O mundo árabe é composto por mais de duas dezenas de
países, populados por centenas de milhões, com vivências que vão do
cosmopolitismo afluente e high-tech de Dubai, ao isolamento faminto do Sudão.
São experiências radicalmente distintas e ainda assim, de forma geral, a
percepção que temos dos países muçulmanos é de celeiro de terroristas, cegados
pelo fundamentalismo religioso e mergulhados numa sociedade tão rígida, que não
deve poder acontecer nada, senão o sujeito toma chibatada. Não comparamos
Paraguai com Dinamarca, mas cremos que “turco” é tudo a mesma coisa (africano
também, “japonês” também....).
A adição dos dezoito episódios da primeira temporada de
Justiça (2017) ao catálogo da Netflix é bem-vinda lufada de vento quente do
deserto dos Emirados Árabes Unidos. Ambientada no privilegiado mundo da classe
alta de Abu Dhabi, o show é drama de tribunal, que contou com a colaboração do
departamento de justiça do emirado, que abriu seus arquivos de casos pros
produtores basearem as histórias. Nomes importantes da TV norte-americana estão
por trás da criação da série, cuja produção é suntuosa.
Há fio condutor e unificador que é a filha dum famoso
advogado, que retorna dos EUA, após se formar em direito. Ao invés de se juntar
à firma do pai, Farah segue seu caminho. Isso tem bem pouco impacto; o que se
destacam em Justiça são os casos. Poder-se-ia alegar que a família de Farah é
liberal e boazinha demais com os filhos, que fazem o que bem entendem. Mas,
daí, teríamos que lembrar que se acreditarmos que a sociedade norte-americana é
igual àquela que vemos em suas séries, então, tratar-se-ia de lócus ideal,
integrado racial e sexualmente. Qualquer seriezinha de terror hoje tem gente de
toda cor e gênero convivendo de boa. E sabemos que está longe de refletir o
real.
O fascínio de Justiça vem dos casos e do olhar que nos
permite em cultura tão nossa desconhecida. Sem júri, os casos são decididos por
um juiz e envolvem abuso de menores, tráfico de droga, bullying, malandragem da
grossa, enfim, Abu Dhabi enfrenta muitos dos mesmos problemas que nós; Alá não
cria um oásis tão rigidamente controlado e a ponto de não haver transgressão. Só
que isso acontece numa sociedade poligâmica, por exemplo, então é muito
diferente pra nós ocidentais ouvirmos que o acusado X se divorciou da segunda
esposa, mas essa é concomitante a uma primeira e não subsequente, como estamos
acostumados.
Acostumados a representações de árabes cobertos até os
olhos (as mulheres, especialmente), atiça a curiosidade de pesquisar, quando se
vê jovens com camiseta do Batman ou mulheres sem cobrir a cabeça, mesmo em
público. Não todas e nem em todas as situações, mas fica claro que há muito
mais sutileza nos códigos do que se supõe.
Obviamente, não podemos
tomar o apresentado como modo fiel de como vivem e pensam os cidadãos de Abu
Dhabi, senão incorreríamos no erro de imaginar que os EUA são paraíso
integracionista à Will and Grace. Mas, como exposição de fatias de vidas e
casos de direito, Justiça é muito eficiente e absorvente.
No final do século XVIII, pouquíssima gente podia pagar
advogado de defesa, quando seus casos iam pro Old Bailey, o Central Criminal
Court. E mesmo quem podia, se via em maus lençóis, caso fosse o acusado. Não
havia presunção de inocência, as testemunhas eram chamadas apenas pra declarar
sobre o caráter dos envolvidos e não havia todas as acrobacias discursivas,
como as conhecemos hoje, através de tantos filmes e séries de tribunal.
Um dos genitores do moderno sistema legal
anglo-norte-americano foi William Garrow (1760-1840), agressivo advogado, que
ficou décadas esquecido, até ser resgatado no final do século passado. Entre
2009-11, a BBC produziu três curtas temporadas de Garrow’s Law, perfazendo
dúzia de episódios.
A cada episódio, Garrow e seu mentor John Southouse
defendem um oprimido, que não teria a menor chance de defesa, não fosse pelos
dois advogados precursores e criadores de precedentes legais. A tarefa da
defesa e das piruetas discursivas sempre recaía em Garrow, para achar soluções
possíveis pros casos, retirados dos arquivos do Old Bailey da época. Não que de
verdade ele defendeu todos os casos apresentados, mas isso não importa.
Garrow’s Law agrada em cheio quem aprecia dramas legais
ou de tribunais, os court dramas, em inglês. Pro espectador contemporâneo,
alguns casos e situações são tão alienígenas, quanto para os ocidentais, alguns
casos em Justiça. Por outro lado, a já multicultural e metropolitana Londres setecentista
enfrentava crimes e transgressões, do mesmo tipo que reclamamos hoje e alguns
insistem inexistir antigamente.
A fim de conferir aspecto
de seriado, os roteiristas desenvolvem um arco representando o envolvimento de
Garrow com Lady Sarah Hill, que foi sua parceira na vida real, mas cuja disputa
pela guarda do filho não aconteceu. Embora resolvida de modo bem novelão, esse
é o naco menos carnudo. Garrow’s Law vale pelos casos apresentados e seria até
mais eficiente, se o formato fosse a de caso da semana.
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