BOLSONARISMO CULTURAL.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Sem exagero, quase me candidatei a novos stents quando fui apontado por um
“amigo” como “agente propagador do marxismo cultural”. Logo eu, perguntei-me
ante a afirmativa surpreendente. Como tenho feito recentemente, não dei asas às
respostas imediatas que voariam fáceis para picos defensivos. Calado, contudo, nutri
certeza desafiadora de respostas, pois, afinal que motivo teria o
“interlocutor”? Não me foi difícil desbastar as razões que motivaram o
esbravejante “colega”. Sou, com muito orgulho, profissional da História defendida
como disciplina curricular efetiva; fui professor da Universidade de São Paulo,
onde passei 50 anos estudando, ministrando cursos, pesquisando (e basta citar a
USP para irritar incultos); fiz e faço trabalhos com analfabetos e desterrados;
apoio o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e dos Sem Teto; defendo as cotas
nas universidades. Não bastasse, por anos acompanho as levas de brasileiros que,
em plena força produtiva, deixam o país e, nesse projeto de história pública
tenho também lidado com mulheres e homens que praticam a prostituição como forma
de trabalho no exterior (fato que, em conjunto, acaba por comprometer a imagem
do Brasil como paraíso sexual). Junte-se a isso a luta pelo acesso amplo, livre,
sem discriminação, ao conhecimento em escolas públicas, gratuitas e de
qualidade. Feito o elenco dessas minhas devoções, percebo que me enquadro
confortavelmente no esquema rejeitado pelo atual governo federal. Então,
segundo eles, sou “agende propagador do marxismo cultural”. Sou? E daí?
Devo dizer que li há tempo Olavo de Carvalho, e agora vendo
sua proeminência, me surpreendo com a notoriedade de alguém que subsistindo
fora do ambiente universitário acumulou argumentos que mesmo articulados de maneira
atabalhoada viraram armas contra o saber formal, edificado por séculos de
avanços cumulativos. Sem muito esforço, devo reconhecer que o olavismo cresceu
exatamente por não ter sido levado em consideração pelo pensamento crítico que,
ironicamente, agora virou alvo de suas colagens discriminatórias e
“excludentistas”. Num esforço quase que de remissão pelo silêncio intelectual, nota-se
naquele franco-atirador dois tipos que se fundem em um mesmo ideólogo. Uma face
da moeda olavista tende a aproximá-lo da figura de “pensador independente”, autônomo,
capaz de municiar “emergentes politicólogos” e assim propor regras que não
precisam de fundamentos embasados. O outro lado, porém, o percebe como
psicopata, maluco, mal formado, e exatamente por isso influenciador de
discípulos desprovidos de capacitações mínimas. Breve esforço de entendimento
leva reconhecer na lavra do proponente – em particular pelos cursos (pagos) via
internet – duas atitudes estratégicas: ao escrever, Olavo de Carvalho obedece a
regras mais moderadas, típicas de quem sabe que o código grafado é persistente
e passível de exames. Ao tuitar, porém, assume papel esquizofrênico, vomita
palavrões, artifício muito apreciado por descontentes que se constroem nos
erros dos governos anteriores, agora mostrados como a boca do inferno. É aí que
entra o alentado brado contra a corrupção. Numa sociedade de massa e
insatisfeita, a chave olavista abriu portas para a vingança do conservadorismo
patriarcal, machista, excludente, atrasado. A corrupção – e o combate a ela como
emblema de uma virada histórica – virou palavra de toque: seu combate tudo
justificaria, mesmo calamidades.
Assumindo-se conservador, o programa do atual presidente
vai galopando e as patas ligeiras de seus ministérios vão fazendo estrada.
Custe o que custar, mesmo que seja propagar absurdos comportamentais, tudo vale
para empanar os avanços anteriores como as conquistas inequívocas da população
pobre – basta, por exemplo, lembrar que desde o Plano Real (1994), a pobreza
caiu 31,9% sob FHC, e no período do ex-presidente Lula, até 2010, houve queda
de 50,64%. Mas isto não interessa a quantos vêm a presença de pobres nas
universidades, em melhores patamares de consumo e até em aeroportos. É
exatamente aí que entra a questão do marxismo cultural. Teriam sido os
professores, artistas e o pessoal formador de opinião os responsáveis pelo
reconhecimento daqueles avanços? E isso teria a ver com que o que Olavo de
Carvalho chama de “doutrinação nas escolas”? Pelo sim ou pelo não, aí estão as
respostas do governo: cerceamento do acesso às artes bloqueadas pela censura e
cortes de verbas; ao invés de motivar direito às escolas públicas e à elevação
do padrão universitário, filtrar acesso elegendo inclusive áreas práticas e de
rendimento econômico imediato; em vez de motivar o ingresso de minorias nos
quadros culturais, exortá-los como marginais, e no lugar propor enquadramentos
familiares que não mais respondem às configurações modernas. E o meio ambiente
que virou ameaça internacional?
Mas há algo que insurge e que, em termos conceituais, não
pode ficar de fora de qualquer juízo, por mediano que seja: no lugar do aludido
marxismo cultural estamos tendo que engolir um bolsonarismo cultural. E como é
pobre! E como é redutor!! E como é desprovido de belezas e, sobretudo de
direitos!!! Por irônico que pareça, há lógica no caos advogado pelos discípulos
olavistas, basta ver os pronunciamentos do presidente para concordar com ele,
precisamos aprender a ler e escrever (e falar). Ele nos dá exemplo da
necessidade de instruir-se adequadamente e a fazer conta (o Ministro Guedes que
o diga e explique a diferença entre 3 trilhões e 800 milhões). E até onde irá o
bolsonarismo cultural? A pergunta fatal que se faz remete às saídas: temos
alguma? Quem se atreve a responder? Será que o vice-presidente ajudará achar atalhos?
Tomara que a marchinha triunfante do carnaval de 1950, vibrada na voz de
Blecaute, refaça a ordem dada por um general para derrubar uma cerca que
atrapalhava o andamento da população “Mourão, Mourão, catuca por baixo que ele
cai”. Mourão, Mourão, veja que o Olavo de Carvalho não gosta de militares,
portanto “catuca por baixo que ele cai”.
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