ESCREVER,
ESCREVER, ESCREVER E FALAR...
José Carlos Sebe
Bom Meihy
Para o amigo
Cláudio, que provocou este texto
Aconteceu!...
Eu terminava de ler “De volta aos textos de Freud: dando voz a documentos
mudos” de Ilse Grubrich-Simitis (Imago, 1995) quando recebi post de amigo que alimenta um animado grupo
de WhatsApp. O livro trata do papel da escrita na formulação das ideias do “pai
da psicanálise”; já a mensagem na rede social dizia de regras do bem escrever.
Justamente porque tenho insistido na distinção entre fala e escrita, senti-me
provocado pelo cruzamento das duas práticas expressivas. Por lógico, tomei
cuidado para não confundir os dois códigos que são diferentes. Uma coisa é a
fala e outra a escrita. Aliás, logo me veio à lembrança um comentário feito por
Jô Soares e corri para ilustrar o que digo:
Pois é. U purtuguêis é muinto fáciu di aprender,
purqui é uma língua qui a genti iscrevi ixatamenti cumu si fala. Num é cumu
inglêis qui dá até vontadi di ri quandu a genti discobri cumu é qui si iscrevi
algumas palavras. Im purtuguêis não. É só prestátenção. U alemão pur exemplu.
Qué coisa mais doida? Num bate nada cum nada. Até nu espanhol qui é parecidu,
si iscrevi muinto diferenti. Qui bom qui a minha língua é u purtuguêis. Quem
soubé falá sabi iscrevê...
E
não foi sem motivo que ri, pois no grupo – formado por amigos velhos (em todos
os sentidos) é comum o pessoal imitar pela escrita o jeito caipira de falar
(“Num disse pro cê”; “te falei que nóis vai”, “os6tudo”). E dando asas, resolvi
declinar o texto vindo pela rede. Sob o título “20 dicas para escrever bem” (na
verdade eram 19 e a última nem estava terminada), luzia uma série de “vícios
gramaticais”, versando sobre “repetição de palavras na mesma frase”,
“abreviaturas”, “uso de expressões anacrônicas ou esdruxulas”, “aplicação de
parêntesis”. Minha primeira perplexidade comprometia algumas dessas “regras”. Como
sempre faço, busquei saber do autor dos tais mandamentos. Achei! Achei, mas não
fiquei satisfeito com as notas indicativas e tratei de ler uma adorável
biografia intitulada “James Michener, a Biography”. E me deliciei sabendo que o professor de pequena cidade do
interior da Pensilvânia, tendo sido abandonado pela mãe ao nascer, filho
adotivo de família Quaker, tinha virado escritor de sucesso e, antes de morrer
em 1995, ganhado o prestigioso Prêmio Pulitzer, honraria distintiva delegada a
autores norte-americanos. E pensei comigo: e agora José; e agora? E agora o que
V. Sa. acha?
A
biografia de Michener explicita a preocupação com as regras do bem escrever e
progride mostrando que Michener se casou três vezes, sendo que a terceira foi
com uma nipo-americana que pouco sabia da língua de Shakespeare. Para auxiliá-la,
tratou de compilar as tais dicas. O premiado autor partia do pressuposto que
pontifica o bem falar só se realiza depois do domínio da escrita. Então,
escrever seria prática funcional exigente. À medida que lia a biografia, ia me
inquietando, pois um dos tópicos abrangidos remetia ao uso do gerúndio, tão
maltratado por nós, brasileiros. Detive-me neste item que sob o número 4
rezava:
Você nunca deve estar usando o gerúndio! Porque,
assim, vai estar deixando o texto desagradável para quem vai estar lendo o que
você vai estar escrevendo. Por isto deve estar prestando atenção, pois, caso
contrário, quem vai estar recebendo a mensagem vai estar comentando que esse
seu jeito de estar redigindo vai estar irritando todas as pessoas que vão estar
lendo.
Isso
bastou para questionar a equiparação. O gerúndio em inglês (I’m thinking, por exemplo) não só é
consagrado como faz parte da aceitação de expressões orais e/ou escritas. Nos
Estados Unidos como no nosso caso – países colonizados – temos razões especiais
para o uso do gerúndio. Antes de tudo, porém, é preciso não confundir gerúndio
com gerundismo e, na dinâmica das
línguas derivadas de matrizes metropolitanas, perceber o gerúndio (substantivo
masculino) como agente do tempo
continuado, algo em processo de mudanças, caracterizado pelo “nd” que,
aliás, se explica não só pela gramática, mas também pela história. O tempo
verbal colonizador é sempre infinitivo e se presentifica:
“estou a pensar”. O colonizado se expressa no “estou pensando”, “andando”,
“fazendo”. De pronto, um exemplo dignifica esta minha explicação. Diz nosso
poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, no encantador poema que ironiza as
normas do vernáculo “A Morte pela Gramática”
Não amando mais escolher
Entre mil serôdios programas
E posto entre o tédio e o dever,
Sabendo a ironia das camas...
Assim,
pude retomar as tais normas vindas pelas redes sociais e filtrar o artifício
ardiloso usado pelo autor norte-americano. Com apoio de Drummont, incorporei os
vícios neste texto, a começar pelo enunciado: escrevendo, escrevendo,
escrevendo e falando... Aprendi! Nesta breve meditação, procurei assumir
algumas das provocações prezadas na tradução das ordens (atribuídas a Michener)
e: repeti palavras, pontuei de forma “errada”, usei termos incomuns, rimei
alguns, coloquei parêntesis e travessões e, se você chegou até aqui em sua
leitura, pode concluir que nem sempre o que mandam fazer serve para uma redação
suportável. E volto ao livro sobre a escrita de Freud, o importante é escrever,
só nos conhecemos, e só nos reconhecemos pela escrita. E Freud explica... E
Drummond alerta contra a Morte pela Gramática.
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