Roberto
Rillo Bíscaro
Agatha
Christie voltou a estar de moda. Mesmo que seu estilo detetivesco esteja
ultrapassado pros atuais padrões de depressão pós-Nordic/Celtic Noir ou de
eficiência sorridente postiça dos CSIs, a obra da escritora britânica reaparece
anualmente nos natais da BBC ou da ITV e até no prestigioso West End londrino.
É o caso de Testemunha de Acusação.
Recentemente,
descobri que o catálogo da Amazon guarda a releitura da BBC, de 2016. Não
conhecia ou esquecera completamente da história, sei lá, mas o fato é que
terminei a experiência transfixado. Nem tanto pela reviravolta mais
mirabolante, meio prevista, mas com o roteiro de Sarah Phelps. Deixemos pra
depois, porém, porque deu coceira de ver adaptações prévias do conto/peça e
quero comentá-los antes.
Com nome
diferente, o esqueleto da história de Witness For the Prosecution foi
primeiramente publicado sob forma de conto, numa revista, em 1924. Um jovem
bem-apessoado é acusado de matar uma senhora mais velha, que por ele se
afeiçoara. Tudo apontava contra ele, mas ele possuía álibi: à hora do
assassinato estava com sua enigmática esposa austríaca. Isso, porém poderia não
pesar muito no júri, porque o testemunho duma esposa amantíssima pareceria
parcial demais, e, além disso, ela era estrangeira.
Esse é
realmente o problema social da obra; notem que Christie sutilmente criou
personagem austríaca, não alemã, mas, que no fundo seria percebida como tudo
igual. Quase um século mais tarde, o roteiro BBCiano de Phelps não deixou isso
escapar. Pros esquecidos da História: em 1924 os britânicos odiavam qualquer
coisa “alemã” mais do que nunca, por causa de Primeira Guerra.
Histórias de
detetives são do tipo que quanto menos se comentar a trama melhor. Suficiente
dizer que no conto a reviravolta coincide cem por cento com o sombrio final.
A própria
Christie adaptou a trama pro teatro. Witness For the Prosecution estreou em
1953 e é estruturalmente bem tradicional, um drama de tribunal, mas totalmente
drawing room mesmo. Agora a esposa era alemã (imagine o ódio aos alemães após
outra guerra), tem pontadinha contra a Alemanha Oriental comunista, o advogado
de defesa é um Sir e o final foi reconstruído a fim de existir certa sensação
de retribuição moral. É menos sombrio e bem mais melodramático.
A primeira versão pra cine veio em 1957, sob a
direção do incensado Billy Wilder, famoso por clássicos como Quanto Mais Quente
Melhor, Crepúsculo dos Deuses e Se Meu Apartamento Falasse, dentre tantos
outros. A estrutura da peça é preservada inclusive em diálogos inteiros, mas
devido a seu pendor por comédia, Wilder insere (hoje) irritante doença cardíaca
no advogado de defesa. O alívio cômico da película é Sir Wilfrid Robarts
driblando e brigando com sua enfermeira particular. Muito infantil ver isso em
2019; o filme ficou pra trás. Mas é engraçado ver que nos 50’s, um boy magia
podia ser interpretado por ator quarentão. No caso, Tyrone Power, aliás, em seu
último papel. Tá tudo ultrapassado, mas se você quiser ver Marlene Dietrich
fazendo jus a sua fama de mulher de gelo, se jogue, mas não antes de ver a
versão-BBC, senão a reviravolta perde a força.
Em
1982, a ianque CBS produziu e exibiu remake do filme de Wilder, com nobre
elenco britânico. Sir Ralph Richardson (também um de seus últimos filmes),
Deborah Kerr, Donald Plesance (o Dr. Loomis, de Halloween protagonizam
praticamente a versão colorizada do filme de 1957. Embora um tiquinho
minimizada, a pantomina da doença, de esconder charutos na bengala e colocar brandy
na frasqueira do achocolatado está tudo lá. Bem burocrática, especialmente
porque vi depois da versão de 2016. Mas, pra fãs de certos atores, vale.
Nas
festividades natalinas de 2016, a BBC exibiu os dois capítulos da mais recente
vinda de Testemunha de Acusação. A Amazon fundiu a dupla num arquivo só, por
isso consta na seção de filmes de seu catálogo. São quase 2 horas de duração
só, então foi bom terem transformado em unitário.
Após a
nevasca Nordic/Celtic Noir , a produção inteligente de crime dramas não poderia
ser a mesma, vide River (tem na Netflix) e Happy Valley. Assim, Sarah Phelps
urdiu uma Agatha Christie Noir. O roteiro criou uma coleção de gente miserável,
num mundo onde nem sempre a justiça se processa da forma idealizada. Um dos
únicos elementos pegos das versões fílmicas foi a doença do advogado de defesa,
que agora não é um Sir. É modesto advogadozinho de porta de cadeia, com os
pulmões detonados por gases das trincheiras da Primeira Guerra. Chacoalhado e
sem fôlego por acessos de tosse furiosos, Toby Jones não deixa pedra sobre
pedra no papel.
Visualmente,
Testemunha de Acusação é dividida em antes e depois da primeira (e maior e de
tirar o fôlego) reviravolta. A maior parte do telefilme é em tons ocres, em
ambientes fechados e à noite. Até o fog londrino é sujo e amarronzado. Depois da
plot twist, as imagens se amenizam e irradiam clareza, transparência. Mas, daí,
Phelps faz grande maldade: não só retoma, mas aprofunda a lugubridade do final
original. Apesar da luminosidade e “limpeza” das imagens nem tudo está bem sob
o sol. É simplesmente arrasante, porque (falsamente) começa como história de
detetive qualquer, pra desabar como drama humano de estilhaçar o coração.
Nem dê moral pros anteriores, Testemunha de
Acusação é a de Sarah Phelps.
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