quarta-feira, 5 de junho de 2019

CONTANDO A VIDA 275


MÚSICA BREGA E O ESPELHO DO NARCISO (1)


José Carlos Sebe Bom Meihy

Com estranha insistência tem me vindo à cabeça uma frase fatal, escrita por Thomas Mann em um dos meus livros favoritos “José e seus irmãos”. Diz o autor alemão, filho de mãe brasileira: “é muito fundo o poço do passado. Não seria melhor dizermos que é um poço sem fundo? Quanto mais fundo sondamos... Quanto mais longe nos aventuramos nas sondagens, mais distante nos parece o fundo do poço e, à medida que vamos descobrindo novos pontos de apoio e atingindo aparentes metas, mais longe temos de levar a nossa sonda, que se estira e se aprofunda cada vez mais, como se tudo quanto encontramos e investigável estivesse preparado para zombar das nossas laboriosas pesquisas... Há, portanto origens provisórias...”. Confesso que esta passagem dói em mim, em especial quando alguém ilumina um caminho escuro retraçado pela memória de minha geração. Sim, é difícil ser brasileiro e a eternidade desta nossa sina grita forte quando olhamos o passado recente, aquele que ambientou um grupo de jovens que ousou sonhar com um Brasil diferente daquele que temos em mãos. E exatamente quando ataques virulentos se manifestam com o conhecimento filosófico ou humanístico, a dor chega a convocar desilusões.
Diria que entre os dilemas que aturdem nossas dúvidas está a qualidade da consciência de classe. Vivemos propalando que somos brasileiros acima de tudo e esquecemos que alguns são brasileiros acima de todos os outros, como se não fossem brasileiros, não tivessem os mesmos direitos e oportunidades. A cultura formal, o acesso à educação neste país tem sido dos privilegiados, dos brancos, cidadãos urbanos e proprietários, de uma minoria que podemos chamar de elite. E assim vamos vivendo como se todos nascêssemos iguais, homogêneos socialmente, e partilhamos supostos falsos como a valorização da meritocracia. Nada mais melancólico do que supor igualdades a partir de pontos de partida diferentes. Os vivas dados à meritocracia se entoam considerando os mesmos níveis de partida, desprezando lugares diversos de saídas. Penso nos interiores de estados como Piauí, Maranhão, Pará. E mesmo sem ir tão longe considero as periferias das grandes e médias cidades, e nelas situo legiões de jovens desfavorecidos, também os negros e pardos, e então, mais do que indignado com o apagamento das diferenças, me sondo do juízo lógico da nossa classe média. E como não falar de exclusão silenciosa e perversa? E como suportar a ignorância de uma elite minúscula que teve seu passado constituído pelo trabalho, durante 400 anos, pelo maior contingente de escravos negros da história? E que essas vítimas da servidão foram libertadas sem um projeto de participação na sociedade? Arde em mim pensar que ao mesmo tempo em que compusemos uma sociedade de classe ainda tenhamos uma das mais berrantes diferenças de condições do planeta.
Mas como já sabemos que o entendimento do Brasil não é matéria para iniciantes, convido a uma visita a um tema que nos afeta de maneira contundente: a música popular. Motivado por busca de compreensão do que seria nossa cultura popular, provoquei alguns debates em minhas redes sociais. E com viço insuspeitado vi aflorada uma determinação interessante: o olhar desprezível sobre algumas manifestações sonoras do “outro”. O termo estética aqui é usado propositadamente, até porque é complicado entender que os chamados subalternos, o tal “povão”, a classe C ou D detenha alguma lógica próxima do bom gosto elegante, das manifestações ditas apuradas. Ressalta assim o nosso poder julgador e os tais outros viram bregas, cafona, sem gosto.
A par desta constatação emerge outro constrangimento. A cultura brasileira em geral simplesmente apagou da consideração de estudos sobre o passado este tema que aos poucos foi sendo esquecido e até visto como exótico, coisa quase que folclórica. A desqualificação é uma das estratégias de apagamento de um pretérito que foi imperfeito na configuração da modernidade brasileira. E no lugar, novos figurantes – Roberto Carlos, por exemplo – foram se constituindo com base de novos acordes e entonações. Posto isto, fica estabelecido um pressuposto aberto às análises: música brega deixou de existir e foi esquecida, ou, no processo de constituição de uma nova elite urbana deu lugar à outra estética, evoluída daquela antes negada? Traduzindo de maneira mais simples, Roberto Carlos e correlatos seriam adaptações da breguice? Afinal, há acertos em se considerar a MPB uma variante da cafonália? Caso haja concordância, a não consideração da música brega seria justificada? Apelando para Caetano, “Narciso acha feio o que não é espelho”?
Por incrível que pareça, os mais importantes autores de história da nossa música e de antologias da chamada nossa música popular não levaram avante o registro da soma de canções que, afinal, se constituíram no mais aceito gênero pelas camadas numericamente mais populosas do país. Note-se que nesse caldo estão autores como Zuza Homem de Melo, Tarik de Souza, Nelson Mota, Sergio Cabral e mesmo o pessoal de esquerda como José Ramos Tinhorão ou Ruy Castro tiveram a sensibilidade de relevar tal gênero que foi à época o mais vendido, tocado e considerado na alma brasileira.
   
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de janeiro: Record, 2010. 7ª. Ed. 458p.

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