GOL DE BRUNA SURFISTINHA NO DIA DO FUTEBOL
José Carlos Sebe Bom Meihy
No dia 19 de julho celebra-se no Brasil o dia nacional do futebol. Nada mais justo numa cultura que, segundo
Roberto DaMatta, sobremaneira, valoriza o uso das pernas, como se vê nos
dribles, na capoeira, nas danças que vão do “samba no pé” à garota de Ipanema
“no doce balanço, a caminho do mar”. E haja gingados. Até entende-se a
aproximação do pronunciamento do presidente nessa data, em evento comemorativo
do nosso esporte-rei, levando-se inclusive em conta ser ele capitão - ainda que
de time que comanda outros jogos, menos esportivos, mais de combates armados. E
por falar em guerra, consideremos então a batalha aberta na ocasião de mais um,
outro, desastrado pronunciamento, dessa feita desferida contra a prolífera
produção audiovisual brasileira.
Tendo como alvo a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, o mandatário propôs dirigir, ele e sua equipe, a cena artística, impingindo
novo papel à arte cinematográfica nacional, com crivo menos estético, mais cívico
e pedagógico (no sentido da oficialização temática). O objetivo institucional disparado
em pronunciamento impensado visaria redesenhar nossa crescente indústria cinematográfica
e, para isto, submetê-la a uma “nova” secretaria, vinculada a um dos
ministérios do governo, ainda não exatamente definido. Tudo para dotar o cinema
de “filtros culturais”, e assim, sanear moralmente as mentes demoníacas,
poluidoras da moral e dos bons costumes. De maneira consequente (se é que se
pode usar o termo fora da lógica semântica), declarou o capitão-presidente
estar protegendo a família e zelando pelos gastos públicos, sem levar em conta
que nosso cinema não é financiado pelo estado, mas sim pela Condecine que gera
os próprios rendimentos, além de multiplicar empregos. Não bastasse a
generalização arrasadora, repetiu uma referência enunciada no dia anterior (18
de julho) em relação ao filme “Bruna Surfistinha” taxando-o de “pornográfico”.
Rebatendo a história levada à tela por Deborah Secco, sobre a
direção premiada de Marcos Baldine, o presidente contrapôs argumentos
exaltativos ao culto forçado de personagens notáveis, “históricos”, dignas figuras
esquecidas. São do capitão- presidente as seguintes palavras “Temos tantos
heróis no Brasil e a gente não fala dos heróis do Brasil, não toca no assunto.
Temos que perpetuar, fazer valer, dar valor a essas pessoas que no passado
deram sua vida, se empenharam para que o Brasil fosse independente lá atrás,
fosse democrático e sonhasse com um futuro que pertence a todos nós”. Com
aquele olhar eloquente que o caracteriza quando liberta o ódio reprimido e se
exprime para seu eleitorado acrítico, pontificou que a sede Ancine deixará
o Rio de Janeiro e terá Brasília como novo quartel-general; eis suas
determinações “a cultura vem para Brasília e vai ter um filtro, sim. Já que é
um órgão federal; se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine.
Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode é dinheiro público ser usado para fazer
filme pornográfico”. Ameaças a parte, parece que o capitão se esquece de outros
filtros, inclusive constitucionais. E nem se fala do direito de livre
expressão. Isto sem mencionar dos já existentes marcos reguladores de idade, ou
seja, das proibições por faixas etárias.
Coroando seus argumentos irados, o mandatário declarou que não viu
o filme e entre indignado e ignorante, desafiado a responder se havia visto o
que criticava, cunhou a seguinte frase “eu não, pô. Vou perder tempo com Bruna
Surfistinha? Tô com 64 anos de idade. Se bem que, tenho uma filha de oito anos,
sem aditivos”. Em face de eloquente declaração, nem vale perguntar se o capitão
leu os livros escritos pela ex-garota de programa, principalmente “O doce
veneno do escorpião: diário de uma garota de programa” que, aliás, teve mais de
300 mil cópias vendidas e a fez figura como líder nas redes sociais brasileiras.
Mas há motivos para a censura oficial? Falemos do caso específico do livro e do
filme: a história de Bruna Surfistinha é necessária como indicação de um
problema gravíssimo como a exploração sexual e/ou o direito ao uso do corpo –
em particular em um país onde a prostituição é legalizada, como no nosso.
Ademais, convém não esquecer que atualmente, só na Europa temos mais de 75 mil
brasileiras e brasileiros se prostituindo. Mais do que nunca é preciso falar
deste assunto, visitá-lo criticamente, sem falsos moralismos, sem hipocrisia,
com sinceridade realista.
Por ocasião das declarações presidenciais, voltei ao pequeno livro
(134 páginas), e reli as amarguras da moça, que precisou se expor para se
redimir e até se desculpar. As frases finais do livro são comoventes e dão
conta da amargura de alguém que pagou para se ver e retornar dona da própria
história. O pedido de perdão para os pais, do anúncio de seu casamento, a
mensagem ao filho que haveria de ter são frases que contrastam com a “leitura”
de quem não leu o livro, não viu o filme, e mesmo assim não gostou. Tudo sem
glamour, longe de panfletagem, como se vê em filmes hollywoodianos como “Uma
bela mulher”, que sequer mereceu censura. E não há como terminar minhas ponderações
sem referência a uma frase dita por um dos mais conservadores comentaristas
nacionais, apoiador declarado do presidente capitão, Rodrigo
Constantino que também indignado declarou “quem não gosta de certo
filme, vale lembrar, tem sempre a opção de simplesmente ignorá-lo. Ainda é a
melhor receita, aquela que preserva as liberdades individuais. Estado moralista
impondo o que pode ou não ser produzido é algo inaceitável”. Inaceitável...
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