quarta-feira, 21 de agosto de 2019

CONTANDO A VIDA 279

SOBRE FILOSOFIA E O APLICATIVO DE ENVELHECIMENTO.
José Carlos Sebe Bom Meihy 



Dia desses, um ente querido, com certa mescla de ternura e picardia, valendo-se de meu celular, fez foto minha e a submeteu a um daqueles aplicativos de envelhecimento. De repente, não mais que de repente, lá estava eu, figurando ainda mais velho. Perplexo, me vi no futuro de mim mesmo e ali, no imediato daquele instante, me formulava de maneira quase cômica, meio trágica, um grande dilema. E não haveria de ser diferente, pois, num zênite, o presente e o passado projetados em um aparelho ilustravam um episódio existencial grave; gravíssimo: eu no futuro. O que é o tempo e o que ele faz conosco, indagava-me? E tudo se complicou ainda mais quando de algum lugar da memória – invisível e inaudita – a voz mansa e sutil de Caetano Veloso se insinuava como trilha sonora tempo, tempo, tempo... Tempo, tempo, tempo, e a continuidade ia pontificando a letra: és um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho/ Tempo, tempo, tempo, tempo, Vou te fazer um pedido Tempo, tempo, tempo, tempo/ Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos/ Tempo, tempo, tempo, tempo. Imagens. Imagens cintilando; linhas desenhadas a partir de uma realidade física e palavras saídas do meu interior. Memória. Memórias. Visão, audição, perplexidades menmônicas. 


Pois é, no instantâneo da foto, achei a brincadeira engraçada, agradeci – e agradecer é render graças no sentido agostiniano –, “salvei” a foto, guardei-a na memoria do aparelho e fui. Fui e comecei a ruminar resultados excitados na minha mais recôndita perplexidade: pode um aparelho, sem licença divina, me inventar no futuro? Como exemplar bovino solto no pasto da imaginação, com aqueles olhos de boi incapaz de entender sua própria história, inábil para supor o próprio destino, com cuidado redobrado, novamente olhei a foto e, me perguntava: como consegue a tecnologia, a partir de medições de distâncias entre os olhos, tamanho do nariz, localização das orelhas, enfim, pela soma dos sinais de tempo – as tais rugas – me projetar em um futuro duvidoso. Ciência aplicada? E a prova, o documento, meu retrato, estava ali, arquivada em uma memória que é minha, mas não o é: memória artificial. Era eu sem ser; eu ficção de mim no registro de um celular que me pertence, mas que também é mercadoria comprada à prestação – e ainda sequer acabei de pagar. 

Respirei fundo, dei graças aos deuses e orixás por desentender como aquele feitiço eletrônico não provoca na grande maioria das pessoas alardes superlativos, não assusta, não espanta. E pelo reverso, faz rir, diverte, gera autocompaixão. Melhor ser louco solitário, admiti, e mergulhei no que via quando, novamente, Caetano ressonou lembrando que Narciso acha feio o que não lhe é espelho... E mais, pelo reverso, rendi ufas: que bom que o artefato que me parecia paranoia viralizava com leveza, convocando exclamações. Só, muito só me senti... E naquela loucura mansa que excitava o historiador que mora em mim fui compondo um teorema complexo: eu, a máquina, um ou dois sussurros poéticos saídos da memória musical que seletou aquelas canções; meu presente, o passado e o futuro, tudo em circunstância imponderável e imagens: tempo, tempo, tempo. Tempo e memória. E silêncio também, aliás, haveria como expressar tanta intensidade reflexiva? Como, quando, por que, para quem, e, de quem? De mim mesmo? Contar por escrito ou dizer para alguém ou simplesmente guardar na memória? Mas em que memória? Na minha, pessoal, ou de alguma máquina? 

Precisava decompor os elementos do tal teorema. Primeiro, acatei a realidade figurativa de um futuro armado, mas bolado a partir de uma realidade referenciada, dos meus traços materiais: eu hoje. Tenho 76 anos, cerca de 50 nos muros de universidades; uma vida toda na chamada educação humanística. Sou professor e vivi institucionalmente os complicados versos de um poema meio trágico composto por ensino, pesquisa e atividades admirativas escolares. Frente a esta multiplicação de tarefas (ou missões), contemplando a tal imagem – ainda mais envelhecida – me convidava a perguntar do resultado da experiência que deu sentido único à minha vida profissional, civil, moral. Frente àquilo tudo, com emoção contida me inquiria: o que afinal eu fiz de minha vida acadêmica, que produzi como historiador de ofício? Valeu a pena professorar? Com quem conversei? Historiador, professor, cidadão? Qual o meu modesto legado? A junção destas questões martelava em mim. Tempo, imagem e máquina. Duas memórias se me apresentavam: a minha, pessoal e humana, e a da máquina, cientifica e tecnológica, e eu precisava entender para me explicar naquele aqui e agora. Demorei para aprender que não controlo o futuro, mas ele está aí, desafiando tudo e todos. Aos poucos fui sabendo que o futuro é algo que está dado pelo passado, mas que mesmo não fazendo parte dele – posso morrer logo mais – ele existe a partir de mim, do que sou hoje.

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