quarta-feira, 30 de outubro de 2019

CONTANDO A VIDA 287

MONTEIRO LOBATO E O ‘BORBOLETOGRAMA’. 

José Carlos Sebe Bom Meihy 


Ocorreu-me fugir de tanta sandice política. O hábito dos jornais pelas manhãs tem se tornado um suplício que, por sua vez, replica os noticiários da televisão. Tudo ficou chato demais. É claro que também devo soar desagradável aos meus interlocutores. Cansei de brigar, de argumentos que apelam para estatísticas e para o esforço azedo de provar que as coisas mudaram. A fim de me prevenir, tenho assumido o silêncio como regra. Entro no ônibus, trem, consultório, lugares públicos, e apenas aceno como cumprimento discreto. Bem discreto, diga-se. Nada de puxar assunto, esbanjar sorrisos ou acenos simpáticos. De tal maneira, tenho levado isso à sério que até sinto falta do ser que fui um dia. Antes, imagine, tinha que me disciplinar para não me perder em falatório, exagerar no humor. Sinto falta, creiam. Tenho saudade das conversas jogadas fora, das discussões intensas sobre futebol, dos certames sobre o nada, sobre o vazio, sobre o inconsequente. Era feliz e não sabia. Você também?... 

Parece distante, mas esse passado mal dobrou a esquina. Nem estamos tão longe daqueles dias em que saíamos mais soltos, era possível ficar até mais tarde na rua, e a solidariedade cintilava como traço comum entre transeuntes – aliás, havia muito mais gente nas ruas. Como mudou tudo! Nossa! Dói-me ver a desconfiança como dimensão do ódio explícito no rosto político nacional. Custa-me aceitar que o outro é meu rival e que “não tem papo”. Não dá para trocar nada sem desconfiar do interlocutor e assim vamos nos esvaziando de brasileiridade, da alegria que nos distinguia como povo. Mas, é preciso reagir. Não cabe supor que estamos sem saída. Buscando atalhos, dia desses, me surpreendi vagando por horas em uma livraria. Não que em casa não tivesse textos me esperando para terem suas páginas viradas, mas via com deslumbramento tantas novidades, novos títulos, capas lindas. E lá ia por todas as sessões escolhendo alguns. Tentações. Cedi a algumas delas e de repente saí com um pacote maior do que o tempo de leitura disponível. No trajeto de volta ouvi meu instinto que murmurava: você está lendo mais e falando menos porque redescobre o silêncio da leitura um mundo de compensações. 

Tive, acredite, uma surpresa grande quando abri o embrulho. Ué, como me deixei trair por escolhas de textos que nada tinham a ver com o senhor de idade que sou. Imagine que entre temas sisudos, magicamente, havia selecionado algumas edições de Lobato, para crianças. E imediatamente sentei-me, e antes de virar a capa lembrei-me que, menino, ainda, me deleitava com a turma do Sítio. E com que prazer passava pelas aventuras daquele pessoalzinho divertido, atrevido e inteligente. Não tenho como me furtar de lembranças, por exemplo, da traquinas Emília querendo mudar o nome da centopéia para “noventa-e-quatropeia”, pois ela não contabilizara a centena aludida em sua busca empírica. E o que dizer do “borboletograma”?! Recordemos: 

“ – (borboletograma) não sabe o que é? Invenção da Emília. Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a idéia de mandar a resposta escrita em asas de borboleta. Agarrou uma borboleta azul que ia passando e rabiscou-lhe na asa, com um espinho, o seguinte: ‘Narizinho, a condessa e o marquês agradecem a honra do convite e prometem não faltar”. 

E as descrições dos interiores de palácios que com tantas outras excitavam a imaginação de adolescentes?! Vejamos esta do castelo do príncipe escamado: 

“linda sala! Toda dum coral cor de leite, franjadinho como musgo e penduradinho de pingentes de pérola, que tremiam ao menor sopro. O chão de nácar fruta-cor, era tão liso que Emília escorregou três vezes”. 

E a ternura das histórias que me enternecem até hoje?! Vejamos: 

“o príncipe deu o sinal de audiência batendo com uma grande pérola negra numa concha sonora. O mordomo introduziu os primeiros queixosos – um bando de moluscos nus que tiritavam de frio. Vinham queixar-se dos Bernardos Eremitas. 

- quem sãos esses Bernardos? – indagou a menina. 

- São uns caranguejos que têm o mau costume de se apropriarem das conchas destes pobres moluscos, deixando-os em carne viva no mar. Os piores ladrões que temos aqui. 

- O príncipe resolveu o caso mandando dar uma concha nova a cada molusco”. 

E as desbaratadas sandices de tia Nastácia que: 

“chegou a ficar amiga íntima da senhorita Sardinha, Miss Sardine, como era chamada no reino por ter nascido nos mares que rodeiam a Terra Nova, perto do Canadá. Como boa norte-americana, miss Sardine mostrava-se muito segura de si. Não era acanhada como as outras. Fazia o que lhe dava na cabeça, tornando-se famosa no reino pelas suas excentricidades. Uma delas consistia em dormir dentro duma latinha, em vez de dormir na cama. ‘Estou praticando para a vida futura’, costumava dizer com um sorriso melancólico. A vida futura das sardinhas, como todos sabem não é no céu, mas dentro das latas...” 

Pois, é. Reinventei a leitura de Lobato e aprendi que ele conversa com o melhor de mim. E olho com saudade o tempo em que me era permitido sonhar com o que não me é realidade hoje. Sei que não posso voltar a ser criança, mas posso ler Lobato como quem ganha tempo para voltar a uma realidade roubada.

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