quarta-feira, 6 de novembro de 2019

CONTANDO A VIDA 288

ORSON WELLES, SOBRE “MORRER NA PRAIA”.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Por incrível que pareça ainda fico nervoso antes de cada apresentação pública. E considere que sou professor há cerca de 50 anos. Isso, por inexplicável que pareça, se dá em todos os níveis de exposição, não apenas em situações de grande audiência ou solenidade. Com o passar do tempo, ironicamente, as coisas se complicam, fico mais exigente, mais tenso, mais responsabilizado, mais tudo que se aproxima do pânico. Nem sei dizer se é como se fosse a primeira ou a última aula. Por lógico, tudo se amplia quando se fala em língua estrangeira sob a certeza de sotaque comprometido. Valho-me, para compensar, de velhas estratégias que se vocacionam a ajudar e nessas circunstâncias preparo tudo com antecedência, em português, busco ajuda de tradutores competentes, gravo e ouço até me convencer de alguma desafetação. É um exercício de paciência, medo e respeito. Paciência pela lentidão do processo; medo de fazer feio e empobrecer a proposta, e, respeito ao público que, afinal, não precisa padecer de minhas imperfeições. Estou a cada dia mais exigente e não posso dizer se isto está mais para o lado da virtude ou do defeito. A complicar as coisas, quando estou no exterior aparecem situações embaraçosas como convites inesperados. Nos róis das dificuldades que se acumulam com a idade, o improviso se figura como ameaça progressiva e a cada vez mais ameaçadora. 

Acabo de chegar de longa viagem aos Estados Unidos. A primeira fase foi deliciosa, de férias com os filhos em um cruzeiro marítimo pelo Caribe. Os sete modestos dias voaram rápidos demais e se vingaram em trabalhos arrastados por um mês. Cumpri agenda em várias universidades, em estados diferentes, tudo apertado e repartido entra as cerimônias regulares de visitante estrangeiro e debates acadêmicos. Meu lado curioso acrescentava ainda algumas fugidas para aventuras turísticas, e assim escapei para ver a vida fora dos limites escolares. E foi muito bom. Estive, por exemplo, na fronteira dos Estados Unidos com o México e pude ver ao vivo, e em tons de cinzas, fração do terrível muro do presidente Trump. Pude também acompanhar a façanha de brasileiros comuns que deixam o país em busca do tal sonho americano. Comidinhas aqui, musiquinhas ali, intercalava trabalho com variações. Aconteceu que neste pacote uma surpresa me tomou de assalto. Fui convidado para comentar o filme “It’s all true” de Orson Welles. Não tive como recusar. 

Acertado que o evento se daria três dias depois, cuidei de me preparar. Rever o filme foi a primeira tarefa. Fácil, fácil não foi, pois uma coisa é assistir um documentário como público, no seu próprio país e outra, bem diversa, ser comentador de peça que não integra sua lista de habilidades. A atitude seguinte contou com ajuda da bibliotecária, e em segundos me foi dada uma lista com 76 livros de crítica e biografias do gênio Orson Welles. O tempo mal daria para breves leituras, e fiquei em dúvida sobre qual escolher. Sentia-me atraído pelo clássico debate em torno do “Cidadão Kane” de 1941, mas tinha que inscrever o “It’s all true” filme que se seguiu. Restou-me então a escolha de dois textos de Charles Higham: The Films of Orson Welles (1970) e Orson Welles: The Rise and Fall of an American Genius (1985). Pronto, estava aberto o caminho. Sem muito dormir, com intervalos suficientes para cumprir os protocolos acertados, me perdi no vasto mundo. E foi um momento-tesouro em minha viagem.

Minha tarefa, porém, era mais pontual e comentar as aventuras vividas pelo “gênio” do cinema em sua visita ao Brasil. Tratei logo de ressaltar o contexto da “Política de Boa Vizinhança” e lembrar que no mesmo pacote estava também escalada a presença de Walt Disney. A fama de Welles, consagrado em seu primeiro filme para a RKO, então principal estúdio de Hollywood, o fazia personagem famoso, dimensão do significado do cinema norte-americano no mundo. Tendo vindo poucos dias antes do carnaval, suas intenções estavam decididas a explicar por que “o Brasil era o país mais feliz do mundo”. Em tempos de tensões da Segunda Guerra isto não era pouca coisa. Há de se lembrar que Welles chegou cansado, pois além do impacto de seu filme mais importante, terminava dois outros produtos (“Soberba” e “Jornada do pavor”). E todos queriam saber como seria o filme sobre o Brasil, questão que, afinal, nunca ficou respondida. 

Hospedado no Copacabana Palace, logo o cineasta trocou a fadiga pela euforia. Dizem que namorou muito, e que foi estopim do rompimento de Linda Batista com Emilinha Borba. Isto sem contar seus próprios comentários sobre noitadas no Cassino da Urca. Questionado por todos sobre o enredo do filme, Welles não revelava, pois ele próprio mais estava atento a colher cenas do que propor um enredo. E não mediu esforços para filmar o carnaval de rua carioca. Problemas de financiamento e de contatos com os financiadores propuseram cortes de verbas e, mesmo propondo dinheiro próprio, ainda foi a Fortaleza colher material para outra fase do filme, essa com a aventura de jangadeiros que resolveram atrair o governo central para suas condições miseráveis. O plano de Welles era ficar três meses, mas no sexto resolveu retomar a façanha dos quatro jangadeiros que, em 61 dias, cruzaram o Atlântico cumprindo o percurso do Ceará até o Rio de Janeiro. Na chegada, porém, exatamente na hora do desembarque uma forte onda virou a jangada e um de seus tripulantes, de apelido Jacaré, morreu. Frente a este lance de tragédia Orson Welles teria declarado a frase que foi incorporada ao nosso dia a dia: fez tanto para morrer na praia.

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