A CRUZ DOS IMIGRANTES, SEGUNDO NICARIO JIMÉNEZ
José Carlos Sebe Bom Meihy
Sem dúvida, um dos grandes dramas contemporâneos tem se expressado pelos processos de imigração em massa, alguns simultâneos, outros em grupos miúdos ou não, todos consequentes. Mais do que mudanças voluntárias e esporádicas, assistimos agora a uma tensa procissão de pessoas que buscam dias menos ruins e minimamente prometedores. Com eufemismo mais agudo, diria que migram fugindo da fome, da miséria e do absoluto desequilíbrio econômico, que polariza setores sociais. Essa transferência acontece como se fosse novela de horrores e, muitas vezes, em nossas poltronas assistimos tais façanhas como se fossem ficções. Nada mais correto para os deslocados que a busca de novos amanheceres; nada mais abstruso para os setores que recebem.
As migrações contemporâneas se explicam pela teoria do push/pull – empurra e puxa – que então exercita sua garra mais afiada e cruel sob o jugo do capitalismo progressivo. Misturados aos problemas inerentes a esses processos multiplicados, justiça social, direitos humanos, deveres morais, se interpenetram exigindo soluções que escapam do bom senso comum e, também, das rédeas de governos locais, quase sempre muito defensivos. A imigração hoje é crônico dilema internacional, talvez o mais complexo deles, por implicar relações consequentes e muitas vezes definitivas e fatais. É exatamente aí que reside o coração dos dramas de pessoas que mudam e que se veem diretamente implicadas na questão de reconhecimento da própria cidadania em terras alheias.
Ocorre que dentre as mais expressivas tragédias está o apagamento pessoal, o silêncio das razões individuais, o anonimato e a simplificação dos motivos de cada um. Tudo é visto no conjunto como se individualidades não existissem, como se tratássemos de animais em bandos. Concorre para isso o ponto de vista dos grupos dominantes, daqueles que se veem, por um motivo ou outro, com maior ou menor intensidade, compelidos ao acolhimento peremptório e sempre incômodo. E no conjunto, tudo é tão grande, tão dilatado e concludente que esquecemos as particularidades de cada caso, e assim condenamos todos à uma igualdade simplificadora, percebendo-os parecidos na condição de indigentes indesejáveis. E torna-se fácil notá-los como forasteiros, oportunistas, ilegais, intrusos, e sob esses refrãos, qualquer particularidade roda junto com o alcance de soluções conciliatórias ou humanitárias. Então, tudo e todos se resumem a estatísticas, notícias informativas, temas retóricos de política internacional.
Pela ótica de quem padece, entretanto, preside algo incontido e épico nessa aventura. Visto no particular, na precisão doméstica e individual, cada singular tem seu fundo heroico que é sempre amiudado por questões que afinal remetem ao interesse dos poderosos que se veem, muitas vezes, invadidos. E nessa toada preside um enredo de evocação bíblica que aliás, se transparece nas narrativas dos que conseguem, de alguma maneira, expiar o processo. Em termos de História, o pequeno, o mínimo humano, o enredo pessoal, se dilui, mas como não há apagamento absoluto, vez ou outra repontam como resultado de lutas tão desiguais. As antinomias se expressam de maneira gritante, opondo os fracos aos fortes; os letrados aos pouco escolarizados; os migrantes aos donos do poder. A sobrevivência dos fracos, assim, precisa se redizer a fim de traduzir condições que levam a pensar nossa ética humanitária. É assim que a arte em geral se presta como código, como meio ou mensagem que supera determinismos estéticos consagrados pelas expressões consagradas. Nesse contexto, a chamada arte popular ganha foros de manifesto político e galga atenção específica.
Por incrível que pareça, no momento prestamos mais atenção nos urgentes problemas africanos do que no nosso próximo mais próximo, ou seja latino-americano. Em termos continentais, a movimentação de grupos deprimidos por fatores de sobrevivência tem provocado mordazes transferências migratórias. As movimentações dos nossos vizinhos latino-americanos – bem como a de brasileiros que integram esses contingentes – têm se intensificado de maneira tão sutil a não mais causar estranhamento. Mas nossa apatia é sintoma de problemas que precisam ser diagnosticados em busca de soluções humanizadas e urgentes. Na altura histórica de nossos dias, uma das mais alarmantes condições remete a busca dos Estados Unidos como espaço de recomeços. Contingentes de imigrantes acorrem, por diversos meios, para a fronteira do México para, de lá, se transferirem para o norte. Ao longo de algumas décadas, mais e mais, estratégias de bloqueio têm sido implementadas de maneira a estancar acessos. A última e mais consequente etapa dessas investidas remete à construção de um muro enorme, capaz de separar toda fronteira.
Em termos de denúncia das desgraças causadas por essas políticas, o cinema tem proposto peças capazes de dimensionar o esforço da Literatura e do teatro, da fotografia e pintura, aberta a denúncias. Mas há também alternativas menos acessíveis, mas igualmente competentes. Entre as possibilidades, um artista particular merece destaque: Nicário Jiménes Quispe, um senhor peruano de pouco mais de 60 anos. Em recente estudo, três autores norte-americanos, Carol Damian, Michael LaRosa e Steve Stein, se juntaram para propor um exame mais íntimo dessa saga materializada pela produção intensa de retábulos. Sob a classificação de “arte popular”, os oratórios prestam-se a narrar as façanhas desses personagens que se mostram em tensões. A mera constatação disso implica historiar o significado do uso dos pequenos altares que deixaram de ser peças domésticas para se transformar em objetos políticos, muitos compondo coleções de museus.
A comparação entre oratórios (da América portuguesa) e os retábulos (da América Espanhola) é interessante como pretexto para se pensar a matriz religiosa, cristã católica, que serve de base para tais manifestações. Derivada de tradições medievais, em particular usadas nas Cruzadas contra os mulçumanos na Idade Média, os altares moveis se tornaram conhecidos e, mais tarde, compuseram o equipamento viajante de conquistadores e peregrinos no chamado “Novo Mundo”. Ainda que no Brasil as pequenas caixas com cenas da vida de Cristo e dos santos tenha permanecido no senso religioso, no lado espanhol ganhou dinâmica especial negociando a comunicação política. E essa foi uma sutil mudança. Em termos de entendimento da variação das mensagens, a imigração tornou-se tema insistente. É aí que Nicario Jiménez atua como expressão máxima.
Herdando de seus antepassados a prática andina de fazer retábulos, em particular de seu avô que produzia referências natalinas para turistas, traços da vivência indígena foram incorporadas às cenas de presépios. E desde logo um desafio intercultural foi imposto: quais dilemas estariam representados? Temas meramente cristãos, católicos? Como repontaria a memória indígena? Submissão ou resistência? Um desafio paralelo se montava e exigia uma relação inscrita na dinâmica capitalista que afinal vincula todas essas manifestações. Como sobreviver com a prática dos retábulos num mundo colonialista? Logicamente a alternativa do consumismo turístico floriu e foi ele o responsável pela negociação temática. Mas houve evolução e as galerias e museus atuaram nisso.
A complexidade natural escondida nas manifestações artísticas populares desafia entendimentos que na aparência são tidas como expressões quase elementares ou ingênuas. O caso das obras de Nicário dinamiza sutilezas e servem de ponte para se pensar na precocidade da mudança da abordagem devoto religiosa para a política. Houve sim um fator primordial motivando o câmbio, o impacto do movimento comunista manifestado nos eventos do Sendero Luminoso, grupo ativista peruano de ação guerrilheira desde os anos de 1970. O episódio “Matanza de Cayala”, em 1988, onde foram mortos e desaparecidos cerca de 100 pessoas marcou definitivamente a produção dos retábulos de Jiménez. É verdade que essa tendência se anunciava no geral, mas a proeminência deste artista se fez mais notável.
Tudo é muito sugestivo na trajetória desses retábulos políticos. Vale destacar desde logo a manutenção do formato externo, de caixa que se fecha com duas portas. Evocando altares, tais peças insistem no branco que abriga muitas figuras multicoloridas, mantendo também a constância de flor/ flores no triângulo superior e nas partes externas. Além da esporádica repetição das representações do nascimento de Cristo – que atende o consumo geral – lances da vida cotidiana são assumidos, desautorizando o exclusivismo religioso. Andanças de bicicletas, aquários, cenas de trabalho ou de atividades de trabalho, sugerem considerações autobiográficas do artista. Sob esta perspectiva, o livro intitulado “Immigration in the visual art of Nicario Jiménez Quispe” enfoca na própria trajetória a saga de toda uma legião de pessoas em movimento, rumo a América fronteirada pelo muro em curso de construção.
Proposto em cinco férteis capítulos, os autores retraçam os espinhosos esforços dos que se arriscam. Com ênfase na vida cotidiana e nos dilemas que atormentam tais aventureiros, e tudo é mostrado ao longo de 130 páginas e cerca de 50 ilustrações artisticamente selecionadas e dispostas alternadamente. Destaque deve ser dado ao congestionamento de personagens que integram as cenas e à movimentação das figuras, quase sempre em constantes conflitos. Ainda que a variação de situações atravesse as inúmeras peças, o humor e a crítica política dá o tom geral. Para a audiência brasileira destaca-se a importância da resistência mais dificilmente notada em nossas produções visuais populares. De toda forma, saúda-se a presença de um livro que nos permita perceber a reação de imigrantes que se sonorizam com acenos de atenção. Sobretudo, este livro serve para alertar o público em geral sobre aspectos que não vemos. E vê-los pela ótica de um latino americano é um convite a pensar o mundo moderno. E nossos dilemas nele...
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