quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

CONTANDO A VIDA 293

SAL, SALÁRIO, SALADA, SOLDO, SOLDADO... 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Calcula-se que cerca de 800 palavras, na língua portuguesa, se iniciam com a raiz “sal”. É muito diriam alguns; outros, porém enviesarão o exagero para salientar os males que esse produto acarreta e, neste quesito, não faltam críticas, pois algumas até o colocam entre “os três pós brancos malditos”, juntamente com a cocaína e o açúcar. Sem dúvida alguma, o sal virou uma espécie de veneno e é condenado por especialistas que inscrevem o sódio entre os maiores inimigos da humanidade. E nem falta quem o enquadre como “problema de saúde pública”. Progressivamente caminhando para a negação, há milhares de referências ao sal, condição que não deixa de temperar debates. Os goumerts, claro, o exaltam e de regra evitam ataques diretos, tratando de mostrar as diversas e sutis variedades, supostamente menos perigosas: sal do Himalaia; sal rosa; sal de lagoas chilenas secas, hidratados, iodificados. Os prós e contras, contudo, seguem uma escalada sem precedentes e isso acende mais e mais debates, digamos, “salgados”. 

As crendices populares, por exemplo, estão cheias de sal, e vão desde o conhecido “sal grosso”, recomendado para “tirar o mau-olhado”, até a fatalidade de derrubá-lo sem querer, como presságio de má sorte e, sob essa eventualidade, aconselha-se que seja jogado um tanto maior por cima do ombro direito para compensar. Até a benção no batismo católico inclui o sal, quando o celebrante faz o sinal da cruz na testa do neófito. Há muito mais diga-se, e chega a ser surpreendente o repertório sobre o sal nas reminiscências gerais de todos os povos da Terra e nas mandingas familiares, inclusive das nossas. Em diversos níveis, do popular ao científico, do religioso à pândega, é difícil dizer o que seria a vida sem o sal. Diz-se, na linha folclórica, inclusive, que a cada grão caído há de ser derramada uma lágrima. E isto não é só coisa de países de fundo ibérico onde aliás, o maior poeta, Fernando Pessoa, escreveu “ó mar salgado, quanto do teu sal, são lágrimas de Portugal!/ por te cruzarmos, quantas mães choraram/ quantos filhos em vão rezaram!/ quantas noivas ficaram por casar/ para que fosses nosso, ó mar!”. E nem é só lá: os japoneses quando vão a um funeral devem levar um pouco de sal nas roupas; na Argentina, diz-se que alguém com má sorte está “salgado”; na Itália recomenda-se que os saleiros não passem de diretamente de mão em mão, e que sejam colocados à mesa para que os solicitantes os peguem; na Jordânia, a noiva deve dar um sache de sal para o marido antes do casório; no México um pacote de sal deve ser deixado ao lado dos túmulos no dia dos mortos; na Irlanda recomenda-se que à cada mudança de casa, seja colocado um pote de sal antes da entrada dos pertences. E por que será que no Brasil colonial era recomendado que mulheres virgens não servissem sal? Lembremos do bordão “será que salguei a Santa Ceia” na boca do personagem Félix Khoury, o vilão interpretado por Matheus Solano na novela Amor à Vida de Walcyr Carrasco... Aliás, uma das obras mais famosas do Renascimento, A Santa Ceia de Leonardo da Vinci mostra o sal derrubado por Cristo como anúncio de mal auguro. Nenhuma referência seria completa sem falar do sal nas músicas, seja com Nando Reis e principalmente com Elis Regina cantando “Água vira sal lá na salina/ quem diminuiu água do mar/ água enfrenta o sol lá na salina/ sol que vai queimando até queimar/ trabalhando o sal” 

Seguramente, a Bíblia é a fonte mais generosa para informações sobre o sal e no Cristianismo, pois são 25 os versículos encontrados, sendo o mais famoso o contido na passagem em que Jesus, depois de nomear as “bem-aventuranças” diz publicamente “vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens” (Mateus 5:13). A par das discussões sobre o sentido do sal para abençoar ou excomungar, bendizer ou amaldiçoar, há uma passagem espetacular quando num gesto de castigo, o Deus Todo Poderoso, no ato de destroço de Sodoma e Gomorra, transforma a mulher de Ló em estátua de sal (Juizes 9, 45). 

Mas, independente de juízos, historicamente o sal sempre foi importante, fundamental mesmo. Conta-se até que era deixado em testamento como bem, já na antiguidade romana quando servia para conservar alimentos. Salário seria o ganho de mercenários nas guerras – soldados – e, depois virou pagamento de trabalho alongando metaforicamente o resultado de jornadas. Salada é a mistura de legumes e demais produtos salinizados; e salgadinho os aperitivos gerais servidos antes de refeições ou nas festas. É possível que no futuro o sal seja recriminado como componente alimentar, mas jamais saíra de nosso imaginário e de nossa boca que, é bom lembrar, o testa pela saliva. Pois, é será que o sal tem salvação? Ou é melhor saltar deste debate salteado?

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