50 TONS DE AMIZADE.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Sempre me encantei com o sentido da amizade em nossas vidas. Pensando nisto, com curiosidade aguçada retomei o estudo da barcelonesa Natàlia Cantó, pesquisadora do comportamento, com ênfase em cuidados afeitos às emoções no mundo contemporâneo, em particular nas sociedades industriais. Instruída por investidas sobre relacionamentos, diz a socióloga que “depois dos 30 anos torna-se muito mais difícil fazer amigos”. O fundamento desta condição remete aos comprometimentos que assumimos com a maturidade: casamentos, filhos, trabalho. Sob esta perspectiva, o tempo disponível torna-se fator fundamental para a limitação do convívio e trocas que, segundo Cantó, “fica reservado ao cumprimento de deveres e tarefas da vida ordinária”. Atribuindo, portanto, às circunstâncias inerentes aos papeis sociais que temos que gerenciar, as soluções de doação de si ficam sujeitas a alguns fatores que antes da maturidade seriam mais soltos, menos dependentes de “necessidades práticas”.
A relação do tempo com a amizade é pendência antiga, com raízes na antiguidade clássica. Aristóteles foi pioneiro ao vincular fases da vida com este sentimento por ele definido como “a forma mais satisfatória de convivência”. Garantindo substância instintiva, Aristóteles elevou a amizade a uma sofisticação que a qualifica “acima de qualquer outra manifestação”. Fundamentando o elogio ao convívio afável e civilizado, diz Aristóteles que “como animais sociais” que somos, torna-se inerente à condição humana desenvolver sentimentos de reciprocidade afetiva formulados por meio de pactos não necessariamente explícitos. No livro “Ética de Nicômaco” são delineadas três fases desse relacionamento incondicional. Na infância dá-se a busca natural de convívio que se realiza espontaneamente na vizinhança, escola, clubes. Numa segunda etapa, mais seletiva, na adolescência, o filtro é triado por escolhas afins, pela gostosura do convívio e, finalmente, na maturidade, pela consciência, respeito, conferência de mutualidades.
De modo geral, as correntes filosóficas dedicam menções ao tema “amizade”, mas ninguém superou Voltaire ao dizer que “todas as grandezas do mundo não valem um bom amigo”. Por certo, há detratores e entre esses, nenhum é mais negativo que Freud ao conceber a amizade como “amor inibido”, portanto, “um sentimento menor”. Britânico, o filósofo Winnicott, porém, rebate implicando o conceito em “reconhecimento da alteridade” e, portanto, “potencializador das melhores virtudes humanas”.
Tendo o plantel de definições e juizos filosóficos abalizados, joguei minha sonda pessoal no sentido analítico da amizade em minha própria experiência. Depois de garantir que sim, de reconhecer que posso me dizer alguém que tem amigos, declinei alguns temas desafiadores: mas amigos não se hierarquizam? Pensando a questão de outra forma formulei: todos os amigos ocupam o mesmo nível de consideração? Pronto, bastou isto para me sentir na selva de escolhas qualificativas. Logo me veio à mente a lindíssima canção composta por Renato Teixeira e Dominguinhos “amizade sincera” (amizade sincera é um santo remédio/ É um abrigo seguro/ É natural da amizade/ O abraço, o aperto de mão, o sorriso...). E foi exatamente este o ponto de partida para emprestar o mote desta reflexão: 50 tons de amizade. E então, no espelho de minha perplexidade me perguntei: existe amizade que não seja sincera? Bastou isto para desabrochar outra série de variações: há “mehor amigo”, “amigo virtual”, “primeiro amigo”, “amizade colorida”, enfim...
Foi assim que ampliou o quilate do livro da inglesa Erika Leonard James “50 tons de cinza”. Mesmo sem ter lido o livro ou visto os filmes me permiti pensar na meia centena de possibilidades de enquadramento de amigos. Mas, me exigi certo rigor, não fui tão impulsivo e cheguei ao ponto de estabelecer critérios para julgamentos. Reconheci que a base de tudo é o afeto, admiti que amizade decorre de um ato voluntário e recíproco, e que é possível ter amigos acima de diferenças de gênero (tenho muitas amigas), de credo, raças e até de ideologia (aliás...). Elogiar a amizade, contudo, me pareceu saudável nesta altura da vida, pois inscrito no conceito de terceira idade, me permito repetir com Aristóteles que “sem amigos ninguém escolheria viver, mesmo que tivesse todos os outros bens”. Verdade, tenho ombros amigos quando preciso chorar. E olhe que tenho chorado muito. E mais consigo agora, ao mesmo tempo, ter amigos como na infância, adolescência e maturidade. Tudo ao mesmo tempo, ainda que em tons diferentes.
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