A VERDADE VOS FARÁ LIVRE: e então é carnaval, eh?!
José Carlos Sebe Bom Meihy
Nossa!... nem vi o tempo passar. Ainda ontem era Natal, depois veio o Ano Novo, dia de Reis e o calendário já pontifica os dias de carnaval. Meu Deus, o que aconteceu com os marcadores do tempo? Aceleraram demais, perderam o controle? Ou eu que desaprendi que uma coisa vem depois da outra, que as datas se sucedem obedecendo a rituais diferentes? É tanta coisa que começo a me confundir, a misturar tudo e não saber mais onde guardei a máscara de “antigos carnavais”.
Lembro-me dos tempos em que pelas ondas do rádio as marchinhas irreverentes se sucediam e por concursos elegíamos a melhor do ano; e a briga para saber quem seria a rainha do carnaval movimentava opiniões. João Roberto Kelly se superava nas irreverências alongando a presença de tantos como Ary Barroso. Como o mundo ainda era redondo (ah, os terraplanistas!) nos giros do globo, a Globeleza sem roupa brilhava nas telas com vinhetas das escolas de samba. Sabia-se que a folia estava próxima e era contagiante. Como tudo mudou! Sabe, me vem a cabeça triste profecia de Carlos Lyra em parceria com Vinícius de Moraes: “acabou nosso carnaval/ ninguém ouve cantar canções/ ninguém passa mais brincando feliz/ e nos corações/ saudades e cinzas foi o que restou”. Pior mesmo, é a continuidade fatalista desta “Marcha da quarta-feira de cinzas”: “pelas ruas o que se vê/ é uma gente que nem se vê/ que nem se sorri/ se beija e se abraça/ e sai caminhando/ dançando e cantando cantigas de amor”. Triste, né?...
Mas se fosse questionado sobre o que mais me abate na consideração sobre este nosso carnaval de 2020, não titubearia em responder que é a falência do humor. Independentemente das origens variadas da celebração momística (africana, indígena, europeia, ou todas juntas), o abraço do humor com a graça é o que mais me acabrunha. Carnaval é/era irreverência pura e a permissão de homem se vestir de mulher e vice-versa, de pobre virar rico (“rei, pirata ou jardineira” como queriam Vinícius e Jobim) dimensionava picardia engraçada. E então tínhamos “nega maluca”, “índio quer apito”, “touradas em Madri” “o rala, rala, rala, coitado do Abdala”, “Maria sapatão”, e éramos mais felizes na irreverência que não ofendia e fazia rir. No reino de permissão (não permissividade) o devaneio da liberdade vestia a fantasia do possível e todos brincavam (“brincar carnaval”, lindo não?!). O quê e como tudo mudou? Tenho um palpite: a falsa moralidade, aquela que não permite mais o “teu cabelo não nega” ou a “mulata bossa-nova”. É claro que professo todas as causas feministas, as orientações sexuais, o respeito a todos cultos, sem dúvida alguma, mas peço licença para manter o pressuposto da pândega carnavalesca, da sátira democrática, irreverente, provocativa. E é exatamente nesta bifurcação moral que atua o azedo dos detratores da alegria picante. A sátira é essencial no tempo do carnaval, é a alma da folia, é graça. Sem este entendimento fundamental, as velhas autorizações para humanizar deuses e orixás correm o risco da censura. Censura burra, hipócrita, ridícula e agressiva. E penso nas batinas irreverentes de padres; nos hábitos provocantes de freiras lascivas, nos turbantes de aiatolás e nas vestes de rabinos. E saúdo o humor do Bloco da Carmelitas e entoo feliz da vida “Alá, meu bom Alá” (Lamartine), e junto festejo os trajes de anjos e diabos, tudo numa brincadeira que pretende inverter o duro cotidiano tão cheio de regras de moralismo falso, patriotices tolas, zangas politiqueiras.
Virando a chave da crítica, devo reverenciar o samba da Estação Primeira de Mangueira que, aliás, retoma o teor crítico inerente ao carnaval e sob o título “A verdade vos fará livre”, na composição de Luiz Carlos Máximo / Manu da Cuíca, legitima o ensinamento cristão. Evocando passagens bíblicas diz a letra elaborada: “Senhor, tenha piedade/ Olhai para a terra/ Veja quanta maldade” e progride “Mangueira/ Samba, teu samba é uma reza/ Pela força que ele tem” e desdobra “Mangueira vão te inventar mil pecados/ mas eu estou do seu lado/ e do lado do samba também”. Talvez o que fira a visão medíocre de críticos é a identificação com o Cristo popular de “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/ moleque pelintra no buraco quente”, isto para concluir um “Jesus da Gente” com perfil legítimo e biografia de excluído “nasci de peito aberto, de punho cerrado/ meu pai carpinteiro, desempregado/ minha mãe é Maria das Dores Brasil”. Sem subterfúgio, num desafio explícito o samba-oração continua “favela, pega a visão/ não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão”.
Aposto na Estação Primeira, na Mangueira querida. Satírica, mordaz, picante, explicando a carência da alegria pândega, ela permite retomar o princípio ditado por Vinícius e Carlinhos Lyra “E no entanto é preciso cantar/ Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade”... Alegrar a cidade e calar a boca de fieis à opressão, ao mau humor e à ignorância.
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