quarta-feira, 10 de junho de 2020

CONTANDO A VIDA 301

SOLIDÃO, SOLITUDE E SOZINHEZ 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Sou do tipo que se apaixona por palavras. Volúvel, namoro dizeres novos, expressões criativas, mesmo gírias amorosas, metáforas afetivas e até trocadilhos cabíveis. Às vezes, são frisons rápidos, calafrios passantes, mas há casos em que reivindicam permanências e se apropriam de licenças que transitórias. Algumas dão trabalho, parasitas se esquecem em meus ramos narrativos, mas, de um ou de outro jeito, sempre passam. Pois bem, em pleno confinamento causado pelo coronavírus o termo da hora é “sozinhez”. Como todo amor que surpreende, primeiro veio o olhar variante da dura matriz “solidão”. Devo logo dizer que jamais abdiquei o entendimento dos poetas românticos, daquela geração que morria jovem, sob a sentença de amores não correspondidos, incompreensões arrebatadas que, em tantos casos, se pontuava na tuberculose. A solidão era semente de tudo... 

“Solidão”, palavra fatal, cola impregnante que de tanto insistir, acabou por provocar complexas variantes. Sim, houve refinamento de sua brutalidade e, epidêmica, a solidão precisou ganhar nuanças menos tenebrosas como: desalento, ansiedade, e sutil se mutar em raison d’être do espetaculoso “mal do século”, a depressão crônica. Convém ainda lembrar que antes de tornar-se vilã-mor, foi chamada de melancolia, depois travestida de “nostalgia”. E deu no que deu. Sem se abdicar da vida, galgada à condição de doença, a solidão demandou remédios e os laboratórios químicos cuidaram de mitigar sofrimentos. A transparência do fado maldito, do sentimento de vazio insano, sugeriu abrandamentos, alívios, e nessa mutação, cedeu lugar à poética expressão “solitude”. 

A solitude ganhou espaço novo ao ser considerada como uma solidão domada, algo alternativo, sem as maldições do termo mãe. Muito além de questão médica que logra vantagem, consideremos o teor cultural que o termo assumiu. Sim, é elegante sentir-se em “estado de solitude” em vez de ser vítima da condenada solidão. Isto, porém, merece revisão posto que a solitude não deixa de ser filha conformada, um ajeite levemente antissocial. E sua expressão é o isolamento voluntário. Não é de todo possível desmentir simpatias pelo termo solitude, mas confesso que às vezes mais me parece um anticorpo natural que se fez em reação à tragicidade de destinos que se perdem em regiões fora do controle pessoal. Ninguém aceita a solidão. Já a solitude mostra-se alternativa plausível. Irônica escolha, diga-se. 

Vejo, contudo, o reino da solitude ameaçado pelo acatamento que progressivamente o vulgariza. Então eis que surge novo termo “sozinhez”... “Sozinhez”... E tão enfeitiçado fiquei com a melodia da vocalização – so-zi-nhez – que dispensei considerá-lo em sua expressão gráfica, com “z” em vez de “s” (sozinhês”) com acento ou não. Foi tudo súbito, ardor mesmo. Avassaladora. Frequente leitor de Guimarães Rosa, ousei desconfiar que fosse invencionice dele. Errei. Busquei sua etimologia e tudo que logrei foi o título de uma composição de Chico Nogueira, aberta com anúncio desconcertante “a angústia é o esquecimento do centro”. Por lógico, cavei mais fundo, acreditando que acharia algo revelador. Consegui: Paulo Mendes Campos. Sim em crônica (sempre elas) de 1965, publicada em livro intitulado “O colunista do morro”, o mineiro autor deixou marcado o termo ao explicar um presente dado à Maria da Graça, adolescente de 15 anos. Era um exemplar do livro “Alice no país das maravilhas”. E, de passagem na dedicatória declinou: “esquece esta palavra que inventei agora sem querer”. 

Talvez a consagração recente da sozinhez tenha outro momento. O crítico Flávio Viegas Amoreira escreveu uma carta, aos 22 julho de 2000 e, na exaltação à Hilda Hilst deixava patente que a “sozinhez” lhe era “solitude específica”, estava dado o sinal da diferenciação. 

Na moldura do confinamento pandêmico (outra vez o covid19) penso na responsabilidade de me assumir um ser solitário, mas sem as doenças da solidão ou os melindres da solitude. Há níveis de recolhimento e de todos o mais severo é que aquele que isola o indivíduo em si mesmo. Não tendo com quem conversar diretamente, sem comunicação que não seja por meio mecânico, como me entender comigo? Que invenção dialógica poderia dar conta de convívio tão íntimo, exclusivo, tão intenso e incapaz de mentiras, subterfúgios, metáforas disfarçastes? Creio ser esta circunstância daquelas inescapáveis do shakespeariano “ser ou não ser”. E a resposta demanda aceitar-se ou não se aceitar. Se o mergulho pessoal for feito no mar profundo da busca do enigmático “conhece-te a ti mesmo”, mesmo sem definição da autoria do enunciado, temos o caminho para perscrutar nossa eventual “sozinhez”. Se nos desamamos, se não nos entendemos na reclusão pessoal e última, restaria ressuscitar a solidão. Em reverso, se aprendemos a nos respeitar no acalanto de nosso eu mais intenso e irrecusável, aí vivemos a “sozinhez”. 

´´Minha sozinhes , Hilda , é solitude específica: as anatomias dum corpo já tão somente só me trazem vazio sem Alma: 

Encontrei uma estranha crônica da não menos esquisita – mas adorável – Hilda Hilst

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