TARZAN E GEORGE FLOYD: vamos abordar o racismo estrutural?
José Carlos Sebe Bom Meihy
Lembro-me aluno do colégio interno São Joaquim, em Lorena, interior de São Paulo. Um entre centenas de adolescentes, havia certa liberdade para os que preferiam usar de forma diferente a hora do recreio: em vez dos esportes, conversas, correrias, optava por ir à biblioteca. Exceção. Era o que precisava: exercitar mais minha curiosidade do que os músculos. Os livros que compunham o acervo da Sala de Leitura Dom Bosco, como seria de se esperar, tratavam da vida de santos, heróis religiosos, mártires, fatos notáveis do cristianismo. Havia também, em complemento, uma seleção de obras clássicas, quase sempre de autores portugueses - no caso de Eça de Queiroz, hoje fico em dúvida se constava “O crime do Padre Amaro”. Mas para surpresa, à gauche, constava uma série que fazia minhas delícias e permitia soltar a imaginação. Devorava a coleção de histórias do “Tarzan, o Rei das Selvas”.
Sei lá por que, mas dos 24 livros da série escrita pelo americano Edgar Rice Burroughs entre 1912 e 1965, havia os 18 publicados no Brasil, pela Companhia Editora Nacional, alguns com tradução de Monteiro Lobato. Fico pensando no significado dessas leituras para o menino que fui. Emoções. Encerrado entre paredes que se me afiguravam monumentais, sentindo-me confinado, o suposto desbravado e valente Tarzan me era o próprio emblema da liberdade. A lembrança deste episódio me veio à cabeça quando me deparei com o desafio de entendimento do crudelíssimo assassinato do negro norte-americano George Floyd, há algumas semanas. Haveria alguma conexão entre uma coisa e outra? Foi então quando lembrei-me que o nome Tarzan significava “pele branca”, e que o hipotético sobrevivente do naufrágio dos pais, lordes ingleses que foram atacados em algum lugar da África em 1888, foi adotado por uma macaca de nome Kala que cuidou do menino que, afinal, liderou um bando de símios. O “pele branca”, que mal falava, era também amigo de alguns outros animais, elefantes, pássaros, mas feroz inimigo dos leões, leopardos, cobras e crocodilos.
O tempo passou. Continuei arrebatado pelo personagem Tarzan, que ganhou o cinema, quadrinhos, peças teatrais. A imagem que sempre me vem à mente o mostra enfrentando inimigos, quebrando o pescoço de feras e conduzindo negros obedientes e indefesos. Demorou para que procedesse uma leitura mais armada do fenômeno e a aproximasse das críticas feitas ao nosso Monteiro Lobato. Instado pelo pretenso investigador que cultivo em mim, primeiro me perguntei se haveria alguma ligação entre o Tarzan e o nosso Pedrinho, aquele das “Caçadas”, que via Tia Anastácia assustada, subindo em árvore como macaca. Deixei de lado a meditação genético-analítica dos personagens e sondei comentários a respeito do anacronismo, ou do tempo de produção de cada uma dessas obras. Sei que é errado julgar manifestações do passado filtradas por preceitos de nosso tempo. Erro grave, aliás, verdadeira afronta à historiadores que respeitam condicionantes das reflexões propostas. Os paralelos, contudo, são inevitáveis e reclamam explicações que não podem padecer de simplismos ou chavões que anulam espaço, tempo e circunstâncias. Assumir o produto sem definição das parcelas é um equívoco até em aritmética, sabe-se bem.
No caso de Floyd, um guarda branco, sufocando por oito minutos, um cidadão negro por pequeno delito é algo a ser seriamente avaliado em termos de limites. Insuportável. Alguma coisa precisa ser corrigida e logo, mas, baseado em que diagnóstico? Quais as parcelas desta conta? E no caso dos dois polos haveria nexo em aproximar a leitura de Tarzan e Floyd? Em termos de homologia, é erro fatal transpor uma situação e vinculá-la a outra sem mediações instruídas. E lembrei-me de Mohamed Ali, o lutador militante antirracista, perguntando à mãe, frente a uma pintura da Santa Ceia, se os negros não estavam sentados ao lado de Cristo porque estariam na cozinha. Precisei pensar mais um pouco, e juntando os pontos, pude compreender que a memória histórica é sutil e muito mais potente que os indivíduos em seu tempo. Frente a tais premissas me perguntei mais severamente sobre a importância de recomendar a leitura de Tarzan hoje, e reforço a afirmativa garantindo que, com os elementos que temos no presente, é possível fazer uma leitura crítica dos enredos e analisar posições que nos parecem condenáveis por cargas de preconceito atuais, mas não o eram antes. Condenar ou censurar, jamais. Jamais. Estudar, sim.
Assistimos no mundo todo a manifestações iconoclastas. Derrubam-se estátuas de personagens que foram considerados ilustres no passado – até Colombo foi atacado – mas não seria o caso de aproveitar exatamente estas situações para motivar exames novos, feitos agora à luz dos produtos somados. Vale despreza-los ou “desconstrui-los” sem critérios claros? Creio que a melhor abordagem para o racismo estrutural é o aprendizado dos fragmentos que propõem a correção da fatalidade que nos compete refutar. Vamos ler Tarzan para compreender melhor nossa desgraça racista.
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