DERRUBAR ESTÁTUAS, DESTRUIR MONUMENTOS, QUEBRAR IMAGENS.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Esta história é mais velha do que se pensa. Muito mais. E tem nome: iconoclastia. A raiz etimológica mostra que este termo vem do grego eikon (imagem), kasten (quebrar). Pesquisas históricas registram um movimento ocorrido no século VIII, em pleno Império Bizantino. Tratava-se de contestação religiosa que pregava contra o culto às imagens ou idolatria. Com fôlego no âmbito religioso, a sanha contra a adoração de imagens, ao longo de séculos, foi ganhando outras pautas, estendendo-se às artes e a homenageados distintos por feitos tidos como polêmicos e condenáveis. Estranho este mimetismo psicológico que tanto se expressa individualmente como no âmbito coletivo. De um ou de outro jeito, a violência e a agressão são sempre componentes à contrapelo da história.
Um dos aspectos mais tenebrosos desta prática culmina na destruição de símbolos que afetam, direta ou por tangência, o sentido público materializado em peças postas em praças, museus, igrejas. Em termos religiosos, no Brasil, por exemplo, tivemos episódios marcantes que nos trazem a amarga lembrança da ação empreendida por um jovem, em maio de 1978, quando então retirou do altar-mor da Basílica Nacional de Aparecida a imagem da Padroeira do Brasil. No atropelo do ato, descuidado, deixou cair a imagem que restou partida em pedaços. Alguns anos depois, o bispo neopentecostal Sérgio von Helder, em 1995, em uma apresentação televisiva, chutou outra imagem de Nossa Senhora manifestando teatralmente sua posição anticatólica. Na mesma linha, muito recentemente temos assistido ataques a terreiros de umbanda e de candomblé, também dimensionando grave preconceito religioso. No exterior essas manifestações ocorrem com certa frequência, sendo que, em alguns casos com destaque e indignação internacional, como aliás aconteceu com a destruição das duas maiores estátuas de Buda (55 e 38 metros de altura) no Afeganistão em março de 2001.
No campo das artes o fenômeno é bastante comum e alarmante. Há situações memoráveis como o da pintura “Mona Lisa” roubada em 1911 por um italiano, atingida por pedra em 1956, colorida por spray vermelho no Japão em 1974, seriamente danificada por uma dose de ácido em 1956, e agredida com uma caneca de cerâmica em 2009. De forma bizarra “Vênus no Espelho”, de Velásquez foi esfaqueada em Londres, em 1914, e, em 1974 “Guernica”, de Picasso, também sofreu pichação por spray, quando ainda estava em exposição, em Nova York. Rembrandt teve sua “Dânae”, esfaqueada em 1975 na Rússia, e a “Ronda Noturna” igualmente agredida em Amsterdã, em 1976. A sequência é grande, mas chama atenção atentados contra imagens e instalações. São vários registos de ataques à estátuas famosas como a Pietá de Miguelangelo (Vaticano), ao dedo de Davi arrancado do pé, à martelada (Florença), mas nenhum foi tão estranho como a insistência nos ataques à “Pequena Sereia”, estátua esculpida por Edvard Eriksen em 1913 e situada na entrada do porto de Copenhague, na Dinamarca – no caso foram, de diferentes formas, desfechados 12 ataques. Num rápido inventário, cabe listar no ano de 2016, mais de mil ataques, em 76 países.
Convém não ver isoladamente este comportamento que além de ser dimensionado como prática exercia ao longo dos tempos, merece ser considerado em seus aspectos constelares. Agressões assim eclodem por algum motivo explícito e extremado. De toda forma, não é justo reduzir o significado do fenômeno diagnosticado como hiperculturemia. Este termo aliás, foi reconhecido a partir da famosa reação - um desmaio longo, sofrido por Stendhal na Catedral de Florença, ante o conjunto de obras de arte e túmulos famosos, em 1817. Os efeitos de peças artísticas, de homenagem ou religiosas são muito sutiis e mexem com valores complexos pouco percebidos na lógica cotidiana.
Recentemente, um fenômeno tem chamado a atenção: as manifestações antirracistas que incidem em derrubadas de estátuas expostas em locais significativos. O mais recente, a derrocada da homenagem feita a Edward Colton, traficante de escravos, em Bristol, no Reino Unido, tem chamado atenção de todos. O movimento antirracista tem alertado o mundo para a atualização de manifestações que mudam seu sentido na medida em que os acontecimentos ganham novos protagonistas. O tema é grave e não cabe reduzi-lo a “vandalismo”. É muito mais. O importante é considerar a gravidade do caso e encontrar alternativas que não sejam a mera destruição, pois não se apaga a história simplesmente supondo eliminar documentos. Lembre-se da gravidade da destruição dos registros sobre a escravidão, proposto no Brasil por Rui Barbosa. Tão consequente é este tipo de atitude que, no Rio de Janeiro, há quem fale da destruição do monumento a Zumbi, pois no Quilombo de Palmares vigiam regras escravistas.
Mas, que fazer? Vale simplesmente mudar de lugar? Como a história não se apaga, por lógico, a medida indicada é a propositura de explicações em diálogo. É difícil, mas não dá para destruir também a possibilidade de se pensar em esclarecimentos, em elucidações que ao invés de recalcar mágoas, deem espaços para debates sobre as consequências de atos e movimentos que deixam marcas que precisam ser levadas em conta. Este debate, se não esgotado em polarizações, traz outra virtude fundamental: medidas de reparação e direito de ofendidos. É hora de pensar isto além das raivas – ainda que muitas vezes justificadas.
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