CARTA AOS MEUS BISNETOS.
José Carlos Bom Meihy
Queridos
Escrevo-lhes de um dia perdido no início do século XXI, mais precisamente em julho de 2020. O ano é numericamente exato e, na repetição de dois 20, 2020, sugere ilusão especular repetida. Erro dantesco querer alguma “outra vez”, pois este ano, ainda em curso pode ser considerado o pior da vida de muitos. Tudo segue muito intrincado, cheio de esquinas que prometem um futuro próximo trocado de promissor por arriscado, na melhor das hipóteses. É por isto que lhes escrevo, aliás. Quero deixar distinto meu testemunho e revelar um estado de espírito inquietado pelo medo, pela frustração e desalento. Gostaria anunciar um devir melhor, talvez uma saída depurada desta pandemia tão atroz que nos acomete, porém, faltam-me forças e sobram ameaças que abatem esperanças. Deixem-me começar por um fato matriz: imaginem que, devido a covid19, em pouco mais de 100 dias o número de mortos passa de 70 mil, e, estacionados em platô altíssimo, ainda esperamos o declínio estatístico. Por favor, considerem que escrevo sob a média de mil mortos a cada anoitecer, e assim esta carta se faz com um olho retrovisor e outro no agora, imaginando o tempo bisneto projetado numa ordem progressiva de triste matemática.
A sotto voce, discute-se o fátuo refinamento passado o trauma avassalador. Ouvem-se, cá e lá, falas alvissareiras, predizendo um mundo melhor, mais fraterno, solidário, sábio por aplacar feridas tão expostas que, dizem, “vão passar”. Estamos no presente sangrando por um passado mal vivido, desgastado por exageros e desperdícios, explorações e abusos de toda ordem. Graças, principalmente, ao descuidado com o planeta que se exibe quase esgotado. Sem atenção à ordem natural das coisas, chegamos ao ponto da exaustão confinada em nós mesmos. Não estou otimista. Não consigo estar, desculpem-me, pois, as dores sociais são tão evidentes, as distâncias sócio econômicas tão extremadas entre miséria e riqueza, e a falta de compaixão para com atingidos diretamente só fazem somar fatalidades e apontar para o despenhadeiro que lhes entregamos...
É verdade que o momento poderia nos convidar a possibilidades provocantes que, sem elas, não nos restaria o mínimo: temos que mudar, há de surgir um “novo normal” - e mesmo sem entender bem que “normal” seria este -, sinto-me compelido a escrever pensando em alguma satisfação a vocês. E fala-se em um voluntarismo pessoal como se tudo dependesse de nós mesmos, de uma mudança que começaria em cada qual. Ilusão, meus bisnetos. Passamos pela Primeira Guerra Mundial, pela Guerra Civil Espanhola que viu seu fim na Segunda Guerra, trazendo o azedume alongado na Guerra Fria. Não podemos nos esquecer da Guerra das Coreias no raiar dos anos de 1950, e que dizer da Guerra do Vietnã, dos conflitos árabes-israelenses, das guerras de independência da África e nela das guerras civis? E nem cabe deixar de lado o rosário de golpes militares na América Latina nos anos de 1960 em diante. E haja Balcãs, Chechênia, Golfo... Nossa! Ah, não tenho como me esquecer embargos, armas químicas e vírus de laboratórios. É muito, meus bisnetos. Muito, e o que aprendemos?...
E as endemias, epidemias e pandemias? Valeram lições? Florestas abatidas sem piedade, povos indígenas sob ameaça de extinção, racismo e negacionismo à solta. Definiu-se, imaginem meus bisnetos, um “gabinete do ódio” e um “escritório do crime”, temos um presidente que renega a cultura e a ciência, e mesmo acometido pelo vírus maldito (dizem) ainda insiste em priorizar a economia em vez da vida. A soma destas mazelas se me impõe tristezas. As consequências são ameaçadoras: nacionalismos exacerbados e ressurgimento de uma direita propaladora de fechamentos de fronteiras, e daí: exílios, migrações clandestinas, tráfico de pessoas, liberação de armas, privatizações e mais privatizações... No “encolhimento do estado”, a exploração sequente da mão de obra empobrecida a cada dia.
Trabalho academicamente com o conceito de memória, e sei que nela se opera a seletividade, condição que abriga o esquecimento. Sei também que o mnemônico guarda misterioso efeito subterrâneo que reaparece quando determinadas circunstâncias se combinam. Pois é, neste quesito é que considero o que marcará a sua geração como filhos de pais que se redefiniram na pandemia, que tiveram que se levantar órfãos de um estado incompetente e de um sistema cruel demais. E assim justifico estas linhas deixadas como pedido de desculpas. Triplas desculpas: pelo fracasso de minha geração, pelo legado a seus pais e a vocês a quem caberá reconstruir o mundo. Desculpo-me também por deixar as dívidas de uma coletividade que não soube aproveitar as benesses do tempo, exagerou no apelo consumista, não entendeu os avisos da natureza que reagiu com uma pandemia desafiadora de novos programas. A história contemporânea dividirá o tempo em um antes e um depois do coronavirus19, e, resta esperar que a sua geração aprenda o que a minha não soube. É isto... Junto ao meu beijo final, um fecundo pedido de perdão: falhamos. Que seus pais façam mais do que conseguimos e que vocês reinventem um mundo melhor.