UMA LÁGRIMA PARA A CASA ABRAHÃO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Para Manuela, Gabriel e Anna.
Difícil dizer alguma coisa sobre a loja de meus pais, a Casa Abrahão. Sei pouco da origem familiar do lado paterno; na surdina, fala-se que meu avô havia morrido de fome no Líbano durante a Primeira Guerra Mundial. Há alguma documentação referente ao local de origem do ramo Bom Meihy, Djbeil, na lindíssima costa mediterrânea. Órfão, restava a meu pai um tio, Habib, boêmio conhecido na Lapa carioca. Aos 13 anos, sozinho, Abrahão foi trazido para o Brasil. O Rio de Janeiro foi cenário adequado para o “turquinho”, que logo ficou conhecido pela bela estampa e prosa sempre decantada...
O lado materno era mais exposto, pois compunha a leva de libaneses vindos do Vale do Bekaa, depois de 1880, motivados pela visita do Imperador Dom Pedro II. É segura a afirmativa que, sendo cristãos, iriam dar início ao comércio religioso em Aparecida do Norte, SP. Juntamente com outros ramos oriundos da mesma área: Abdalla, Samaha, Chad, em conjunto, esses “turcos” deram vida a um rosário de barraquinhas que, mais tarde, se foram adaptadas à dinâmica da proposta e viraram lojas, depois hotéis, restaurantes.
Papai era filho único, contraste absoluto de minha mãe, que tinha mais 17 irmãos. Não bastasse, meus avós ainda cuidaram de mais 4 netos. Complicado imaginar como em uma casa, sobrado com três quartos e dois banheiros, conviviam 24 pessoas. O deslocamento de Aparecida para Guaratinguetá, logo ao lado, foi resultado da necessidade de variação dos negócios aproveitando o momento em que os armazéns de secos e molhados se apresentavam como alternativa promissora. Decisão de meu avô Felipe: seria conveniente espalhar filhos por diferentes localidades do Vale, e assim temos Sebe por algumas praças vizinhas, sempre com lojas.
Reza a lenda que meus pais se viram apenas uma vez antes do casamento. Arranjo comum entre os árabes, minha mãe, filha do meio, deveria se casar logo, pois sua irmã menor imediata estava com tudo arranjado para matrimônio. Mas, havia de se cumprir um preceito respeitado: a ordem por idade. A julgar por ditado que minha avó Sarah repetia - primeiro case, depois ame - este mantra teve fundamento. Sou testemunho de uma dedicação amorosa incontestável: nunca vi e sequer suponho, alguém amar mais o cônjuge do que minha mãe. Meu pai, sempre dedicado à família, era muito (mas muito mesmo) cobiçados pelas freguesas que o conheciam como “turco dos olhos verdes” - soube de uma que “tomou veneno” por causa dele.
Delego obediência à tradição o fato de minha mãe levar dote no ato do casório. E, imaginem, era uma bolsa com contornos em ouro. Soube depois que tal lastro foi vendido para o proeminente médico Dr Cembranelli que presenteara sua esposa. Com o produto, em 1931, surgiu a primeira loja, no Largo do Mercado, na esquina da rua Dr Silva Barros. Sem qualquer arrogância devo dizer que esperteza e determinação para o trabalho foram sempre os eixos familiares dos Sebe Bom Meihy. E em 1932, com o dinheiro advindo do dote, meu pai abasteceu sua loja, deixando de ser mascate em Bananal, virando dono de loja. E veio 1932... A Revolução Paulista surpreendeu os comerciantes sem mercadorias, mas a Casa Abrahão...
A família haveria de crescer e isto se deu depois de algumas tentativas frustradas, após a morte do primogênito em 1935; em 39 nascia minha irmã Mirna. Dimensionando a expectativa de um homem, eu vim em 1943, e meu irmão Marcelo em 45. Outro momento marcante nesta saga se deu na retomada da economia depois do fim da Segunda Guerra; foi quando, em 1948 meu tio Nicolau, irmão mais velho de minha mãe, e que também tinha também loja no Largo do Mercado, resolveu abrir uma fábrica de tecidos no bairro da Estiva. Pronto: a Casa Abrahão mudava para seu segundo endereço, agora em frente ao Mercado, num sobrado novo que, em meus sonhos, era um castelo. E o sucesso continuava pelas mãos laboriosas da família. Trabalho, trabalho, trabalho...
No novo endereço, meu pai optou por mudar a vocação do estoque que até então se destinava a roceiros. Aliás, devo dizer que meu pai sempre acreditou no progresso do Vale, e apostou no surgimento de uma classe média local dinâmica. E deu certo. Incrível, em 1950 ele adivinhou que Taubaté se vincularia a Ubatuba e imaginou lá um hotel moderno. Precisaria de muito espaço para contar a façanha que foi construir o São Charbel, sob aquelas condições. Hercúleo...
“Adão não se vestia, porque a Casa Abrahão não existia” cantava o palhaço Pimentinha aos sábados à porta da loja sempre muito frequentada. Aconteceu que em 1975, papai se aproveitou da herança dos Sebe e partiu para a construção da sede dos negócios na Praça Dom Epaminondas. E se fez a terceira Casa Abrahão. Os negócios de meu pai se diversificaram, e com eles afastava-se o passado de pobreza. Papai sempre gostou de carro, mas nunca aprendeu a dirigir; sempre gostou de esportes, mas nunca praticou algum; sempre gostou de dançar, mas nunca levava minha mãe a bailes. Viva cantarolando, adorava Nelson Gonçalves e Dalva de Oliveira... Ninguém gostava mais da vida do que ele! As risadas de meu pai eram contagiantes; contava causos hilários, e como poucos amou o Esporte Clube Taubaté. Com tantas conquistas os olhos de papai irradiavam luz ao ver a tabuleta da Casa Abrahão... Quantas vezes eu o surpreendi na calçada olhando a placa: Casa Abrahão...
O tempo passou, meus pais morreram, meu irmão também. Mirna vive momento difícil, e eu tenho que cumprir o destino. São poucas as costureiras, a roupa feita teve sucesso decisivo, os shoppings estão aí, e meus filhos têm outras prioridades. E a pandemia selou o destino. O que resta? Estão aí as lembranças, a memória apreendida na canção do amigo Renato Teixeira “O turco do mercado” que, aliás, serve, de trilha sonora ao trajeto de um sonho...
Corre uma lágrima de adeus. Adeus Casa Abrão... Adeus... O sonho foi bem sonhado, diria Drummond...
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