Ambientalista é morto por leoas albinas das quais cuidava desde filhotes
O ambientalista West Mathewson, de 68 anos, morreu na quinta-feira (27) após se atacado por duas leoas albinas. Ele cuidava das felinas desde filhotes. De acordo com testemunhas, West estava brincando de luta com Demi e Tanner quando uma delas levou a diversão a sério e o atacou. A outra leoa o atacou em seguida.
West chegou a ser levado a um hospital, mas não resistiu aos ferimentos. Em 2017, as felinas já haviam atacado um funcionário da fazenda do ambientalista em Kruger, na África do Sul. O homem também morreu, mas West manteve as leoas na fazenda e continuou cuidando delas, acreditando que elas nunca o atacariam.
Ao jornal The Sun, um porta-voz da fazenda afirmou que as leoas não serão sacrificadas. “West amava esses felinos como amava os seus filhos. Foi um trágico acidente”, afirmou.
Meditando sobre os argumentos que integram as agendas atuais, a chamada “questão racial” ganha destaque por diferentes ângulos. Grosso modo, há dois polos que se buscam numa lógica nem sempre bem encaminhada. Aliás, a multiplicação ad nauseam de fatos ilustrativos tem sido embaçada de maneira a não permitir exames explicativos de vocação linear. No lugar, polarizações acabam por lançar tudo num “a favor ou contra”, quase sempre sem substância. Navegando pelos mesmos meandros, situações internacionais se emendam de maneira a compor um quebra-cabeça com peças que misturam jogos diferentes. Não que não haja denominadores comuns entre as diversas causas, elas existem, mas algumas eventuais alternativas remetem à colagem de situações que não se explicam nos meios em que são ambientadas.
Um pouco por conta da justa campanha contra a violência policial que provocou a morte de George Floyd, em escala mundial, uma série de demonstrações tem vindo à ordem do dia. A tendência ao desmonte de um tipo de história que suportou o tráfico e a escravidão negra muitas vezes frustra pela carência de fundamentos que poderiam melhor instruir pautas justas. Vamos a um exemplo. Há algumas semanas rodou em várias redes sociais uma campanha assaz polêmica por ser chocantemente anacrônica, ou seja, por considerar com olhos de hoje o que não era válido no tempo relatado. Um grupo de pessoas que se dizem antirracistas deflagrou campanha conta o filme “E o vento levou”, clássico do cinema norte-americano de 1939. No ano seguinte, concorrendo ao Oscar a película baseada no livro da jornalista Margaret Mitchell além de arrebatar os principais prêmios, deu ensejo a um fato marcante na história do cinema: pela primeira vez uma atriz negra, Hattie McDaniel, ganhava o troféu. Na ocasião, emocionada, ela declarou “espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para minha raça e para a indústria cinematográfica”. Tendo feito o papel de empregada doméstica, filha de ex-escravos durante a Guerra de Secessão, a atriz concorreu com Olívia de Havilland, preferida. Dear Hattie – como gostava de ser chamada – voltou à cena como foco principal de uma campanha contra a inclusão do clássico filme na lista do HBO. Pelos protocolos da época daquela premiação, os negros não poderiam pisar na famosa passarela vermelha e nem entrar pela mesma porta que os brancos. A retomada dessa lamentável atitude estadunidense valeu como argumento para a pretendida suspensão do filme. Inúmeras personalidades, principalmente da crítica cinematográfica, bradaram contra, e por fim ficou reestabelecido o merecido posto da peça que é considerada entre os dez melhores de toda a história.
O destaque dado entre nós ao episódio hollywoodiano merece um paralelo importante com algo que se passou no Brasil, também envolvendo uma atriz negra norte-americana. Em junho de 1950, o Teatro Municipal de São Paulo recebia uma famosa companhia de dança que fazia estrondoso sucesso na Broadway. A estrela principal, Katherine Dunham, também conhecida como "matriarca e rainha mãe de dança negra", além de antropóloga, era ativista da causa antirracista e, por isso, personagem de destaque mundial. Ao chegar na capital paulista depois de passagem pelo Rio, teve sua reserva - bem como de todo seu elenco - vetada no então elegante Hotel Esplanada. Profissional responsável, mudou o endereço, fez a apresentação que se repetiu por mais duas semanas provocando delírio das plateias - ainda que a primeira apresentação fosse atrasada pela dificuldade de montagem. De toda forma, na primeira coletiva à imprensa, indignada, pôs a boca no trombone. Os grandes jornais como O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã e Jornal de Notícia, entre outros, alardearam a situação, provocando um debate que merece cuidados dos ativistas brasileiros.
Os ecos do evento ressoaram fortes também na política. Um dos debates mais intrigantes sobre os preconceitos culturais brasileiros tem sido apagado, principalmente porque envolve de forma direta a figura de Gilberto Freyre. Sim, exatamente o consagrador maior do que ficou conhecido como “mito da democracia racial”, era a esse tempo deputado e fez eloquente discurso apontando o absurdo da situação dizendo que “o fato não deve ficar sem uma palavra de protesto nacional”. E não ficou, pois deu alento à aprovação da Lei Afonso Arinos. Cabe lembrar que o debate sobre a desejável criminalização do racismo teve que superar a fase anterior, quando, na Constituinte de 1946 se deu um desentendimento entre as propostas mais liberais e o partido comunista que percebia a causa como desviante da proposta de “luta de classes”. Assim, modestamente ficou assinalada naquela Carta, no artigo 141, § 5º apenas a proibição à propaganda de preconceitos de raça. Houve algum avanço com a Lei Afonso Arinos que, em 1951 foi promulgada por Vargas, proibindo a discriminação racial, considerando o ato como preconceito de raça e cor da pele. Lembrando que apenas na Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XLII, tivemos a prática do racismo como “crime inafiançável e imprescritível” resta retomar a proposta lembrando que sem uma consistente noção dos fatos nacionais fica difícil o entendimento da moldura nacional do debate sobre racismo. As alusões ao “E o vento levou” e a participação de Katheline Dunham, bem como o reenquadramento de Gilberto Freye e Afonso Arinos comprovam a necessidade de análise dos protagonistas no debate que, infelizmente, hoje mais se parecem com discussões norte-americanas do que propriamente nacionais.
Músico com albinismo afirma que coronavírus aumenta risco de ataques em países da África
LONDRES (Thomson Reuters Foundation) - A pandemia de coronavírus deixou pessoas que têm albinismo com medo de ataques e assassinatos em regiões da África onde partes de seus corpos são usadas como amuletos da sorte, disse um músico zambiano com a doença.
John Chiti, de 35 anos, afirmou que já houve um assassinato na Zâmbia desde que o vírus surgiu, e o túmulo de uma pessoa com albinismo foi desenterrado e partes do corpo roubadas.
Outro homem teria sido atacado na capital Lusaka na semana passada.
"Mesmo enquanto tentamos sobreviver a esta Covid-19, pessoas com albinismo continuam a ser caçadas", disse Chiti à Thomson Reuters Foundation por telefone de Lusaka.
"Isso é muito preocupante, estamos vivendo com medo."
Na África Ocidental, segundo Chiti, as pessoas com albinismo também foram apontadas como culpadas pela Covid-19.
O albinismo - falta de pigmentação na pele, no cabelo e olhos - afeta até uma em 15.000 pessoas na África Subsaariana, de acordo com a Organização das Nações Unidas.
Chiti, diretor executivo da Fundação de Albinismo da Zâmbia (AFZ), disse que as pessoas também temem que os ataques aumentem antes das eleições gerais da Zâmbia no ano que vem.
Existem cerca de 25.000 pessoas com albinismo na Zâmbia, de acordo com dados oficiais.
"Sempre que há eleições, vemos um aumento nos ataques rituais", declarou Chiti.
"Os políticos que consultam os feiticeiros estão sendo instruídos a procurar certas partes do corpo para eles ganharem as eleições, então ... estamos ficando cada vez mais preocupados com nossas vidas."
Um refúgio romântico para dois namorados se transforma em uma luta pela sobrevivência quando o ambiente ao redor exibe sinais de uma infecção misteriosa.
O mundo é polissêmico. Tudo depende do jeito de falar, do tom de voz, maneira de escrever ou se expressar. Na mesma toada de “o que dá pra rir, dá pra chorar”, do batido “copo meio cheio, meio vazio”, ou mesmo da “rosa entreaberta, entrefechada”, a referência ao caipira e ao negro pode se ajeitar tanto no preconceito pejorativo como no elogio ufanista. O enfoque fica mais complicado quando luzes são acesas sobre o brio nacional e a participação na cena política recente. É aí que a memória ganha nuanças consequentes e coloca em questão a civilização de feições europeias como avesso do nacionalismo de matiz acaboclada. Mas... mas tem hora em que o orgulho nativista reponta desafiando a redefinição do ethos da brasilidade. O uso político dos julgamentos é termômetro propício para medir a absorção de questões como “caipirismo” e “mestiçagem”. Na mesma medida, o contraste emerge quase sempre em nome da dicotomia progresso x atraso.
Com certeza, em termos amplíssimo, este debate como nó teórico foi amarrado nos anos de 1920 – mais precisamente em 22 – quando então o Movimento Modernista deu argumentos formais para a aparente refutação do método colonizador europeu. Frases fáceis e de efeitos estéticos ecoaram em brados picantes como “tupi or not tupi” (Oswald de Andrade) ou “sou um tupi tangendo um alaúde” (Mario de Andrade). Com a passagem pronunciada em 1928, no livro “Macunaíma”, de Mario de Andrade, estava decretado o dilema “Oropa, França e Bahia”, e assim, abria-se a temporada para a qualificação moderna de quem somos.
Na fresta irrompida na década de 1930, os três grandes ensaios fundadores da produção intelectual brasileira se abraçaram para nos explicar na chave da “Raízes do Brasil” (Sergio Buarque de Holanda), “Casa grande e senzala” (Gilberto Freyre) e “História econômica do Brasil” (Caio Prado Jr). De certa forma, ainda que com críticas, a cultura em todos níveis expressivos carreou o pressuposto da gentileza mestiça e das delícias tropicais. Como estereótipo de conveniência, nos deixamos transparecer como país harmonioso, de relações incruentas, enfim um povo acolhedor, simpático, brincalhão. E nossas marcas eram o samba, a feijoada, o carnaval junto com o futebol, e mais recentemente a caipirinha e a capoeira. Tudo bem arrumadinho no melhor feitio esticado popularmente na base do “patropi”.
Diria que nos anos de 1980, na apelidada “década perdida”, publicamente os desconfortos latentes começaram manchar essas lógicas simplistas que não se continham mais nas abstrações genéricas e teóricas. Era chegado o tempo da provação prática que punha em dúvidas as referências filtradas pela representatividade abstrata. E não foi sem motivos que as campanhas eleitorais deixaram transparecer tais dilemas, até porque os votantes teriam que caber nos perfis dados pela “imagem e semelhança” dos candidatos. Convém lembrar que a essa altura já havia concorrentes com perfis populares, comprometendo a generalidade estereotipada. Tudo ficou mais explícito na campanha presidencial que culminou com a vitória de Collor de Melo, em 1989, quando um nordestino, migrante, perdeu para um legítimo filho da elite. Seu substituto, Itamar Franco, passou a ser taxado de “caipira”, e por isto incapaz. Na eleição de 1994, o tema sobre a representatividade étnica ganhou notável visibilidade. Sobremaneira, o candidato Fernando Henrique Cardoso, intelectual respeitado por produção acadêmica fundamental, projetou o problema tanto em esfera nacional como internacional. Dono da sofisticada “teoria da dependência”, onde demonstrava a fatalidade do vínculo entre “centro e periferia”, em sua campanha presidencial, tendo novamente como opositor o mesmo tipo “do povo”, atraiu o debate para o eleitorado. Valendo-se de estratégia populista, a fim de garantir que não exclusivamente da elite, insistia em dizer-se “mulatinho”, “com pé na cozinha” e até “africaninho”.
As escolhas de FHC objetivaram, primeiro, o eleitorado negro, mas manteve o tom negativo do caipira. Em 1996, por exemplo, disse em Lisboa “como vivi fora do Brasil, na Europa, no Chile, na Argentina, me dei conta disso: os brasileiros são caipiras. Desconhecem o outro lado e, quando conhecem, se encantam”. No ano 2000, novamente em campanha, não poupou os caipiras e naquele junho, disse textualmente: “Foi a mentalidade realmente colonial que, infelizmente, pegou parte da nossa elite, até parte da elite universitária, da elite da imprensa, que tem cabeça colonial, que imagina que o Brasil é um país que tem de andar de cabeça curvada a toda hora”.
Sobre o caipira, a percepção negativa de FHC atravessou os tempos, não mudou, e fez-se particularmente notável quando em 2012, falando sobre moderna política expressou-se contra seu ex ministros (duas vezes) Serra dizendo que ele era “provinciano”, mas muito pior foi referir-se a Alckmin, reconhecendo que “ele não saiu de Pindamonhangaba ainda. Quando foi deputado federal, parecia um vereador”, aludindo a prática de trocar telefonemas com prefeitos para discutir convênios firmados pelo governo estadual.
O olhar crítico negativo de FHC sobre os caipiras sugere outra leitura de sua teoria da dependência: tudo fica submetido a uma mentalidade central, urbana, industrial, que, por sua vez, projeta o caipira na margem oposta. E então a culpa de tudo passa a ser do pobre caipira que, afinal, seria o produto acabado da tal mentalidade colonial. Estranho mesmo é o processo de escolha de contingentes de eleitores. Os caipiras ficaram de fora, pois, grosso modo, não participam maciçamente do bloco votante engrossado pelos negros nas cidades. A boa notícia é que aos poucos vamos aprendendo a ver quem é quem, além dos preconceitos e, assim, entendemos melhor quem é quem...
MODERNIZAÇÃO DA CAIPIRAGEM: sertanejos e o telefone.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Há quem acredite em coincidências. Muitos duvidam, e gente séria: Kardec, Marx, Jung; os árabes já diziam “tudo está escrito”. Certo ou errado, aconteceu de ouvir o mais velho dos sambas gravados, “Pelo telefone”, do Donga, e em seguida tocar “Por telefone não” com a dupla Maiara e Maraísa. Pronto, estava dado o sinal para inquietações. Cem anos entre uma e outra canção. Cem anos. E as duas pareciam se conversar desde o título. Logo tratei de buscar ligações e não demorou para que minha curiosidade armasse uma cilada sedutora: por telefone! Meu Deus, pensei, um século entre uma letra e outra e ambas falando do mesmo aparelho. Daí foi mecânico lembrar de 1969 e nele Jorge Ben Jor com “alô, alô Teresinha, aquele abraço”. A voz inconfundível de Tim Maria, em 86 inscrevia o “Telefone” como uma das mais marcantes de sua saudosa carreira. E veio fácil o trecho de Herbert Viana com os Paralamas do Sucesso cantando em 88 “Quase um segundo”. A sequência prometia continuidades quando me perguntei sobre o significado do aparelho inventado pelo escocês Graham Bell para os/as sertanejos/as. Não poderia de ser de outro jeito, pois a interpretação da dupla feminina é muito desafiadora. Dei asas à imaginação, começando por supor o significado da música do campo adaptada às modernidades urbanas.
Mania de historiador, logo pensei em periodizar a questão. Foi quando então, meu lado saudoso, de alma interiorana, me fez recuar no tempo, lembrar que ainda menino assisti às demonstrações do que se chamava “moda de viola”. Tratava-se de grupos não profissionais, de gente do campo que cantava em conjunto composto por 3, 4, 5 pessoas. Animando festas religiosas, as cantigas eram longas e arrumadas em vozes sincopadas que se harmonizavam, como definiu Mário de Andrade. Não se pode dizer que eram composições espontâneas, mas estavam livres de tempo de duração. E contavam histórias, ah, como contavam! Os temas do campo eram plenos de passarinhada, flores, cavalos, estradas e muitos luares.
Filha do tempo, a inversão populacional do campo para a cidade foi exigindo adaptações e o controle capitalista impôs limites que se fizeram determinantes nas gravações. Cada dia mais longe, as modas de viola foram diminuindo e duvido que existam muitas. Em compensação, já na cidade, derivações foram se acomodando merecendo a qualificação “sertanejo raiz”. Mesmo renovada, ainda era reconhecida como “música caipira”, até porque a temática era a saudade nostálgica da fazenda. Falava-se do mundão deixado prá trás, mas com tempo de duração menor, tendo que caber nos limites dos velhos discos de 78 rotações. Ao mesmo tempo, as apresentações aconteciam em auditórios, espaços fechados, já demando aparelhagem eletrônica, microfones, instrumentos cada dia mais aperfeiçoados. Os antigos conjuntos de intérpretes foram encolhendo até que se chegou a um padrão condizente com o gosto do mercado: as duplas. Não se pode dizer que a aceitação era pequena. Não, mas era silenciada por uma certo pudor urbana que não resistiu por muito tempo.
Essa evolução ia se imponto de maneira a chegar nos anos de 1980 e acontecer a explosão das duplas sertanejas. É fácil reconhecer nessa fase, que pode ser chamada de “rurubana”, a troca da observação do campo pelos ajeites na cidade, aliás é aí que o telefone aparece. Geração ponte, era preciso relativizar a tradição campestre. E haja multiplicação destas parcerias que, com raras exceções, eram masculinas. Sim esse processo foi atravessado por algumas presenças femininas, mas eram poucas como Inezita Barroso e as Irmãs Galvão; ah, e havia pares como “Cascatinha e Inhana”, exceções do padrão masculino. Mais tempo corrido e chegou-se a uma outra geração que derivando dos pais ia se deixando permear por coisas da cidade.
No final dos anos de 1990 já se falava de “sertanejo universitário” e então reinventava-se o uso da bota, da camisa listrada, melhorava-se muito a qualidade do som e um esquema empresarial marcava esse gênero que passou a abrigar nomes solos. E os assuntos abordados se tornam muito mais românticos, perdendo a determinação dos ares campestres. No lugar, os lamentos individuais se combinaram com acordes antigos, memórias que não deixavam de repontar. Aliás, é importante assinalar que este processo não é linear, nunca foi. A persistência de tradições emergia cá e lá, quase que como contraponto ou reserva de lembranças que não se apagam de vez.
É neste circuito que o telefone se liga como argumento analítico, ou seja, questionando o significado do aparelho no cancioneiro sertanejo? Um breve passeio pelo repertório pode dizer alguma coisa; vejamos. Considerando apenas os sucessos incontestáveis, não levando em conta autorias, temos uma lista reveladora da modernização da caipiragem. O primeiro destaque desta sequência foi “Telefone mudo” com o Trio Parada Dura; em 88 o Trio Carreiro gravou com ampla aceitação “Chamada a cobrar”, dando passagem para as duplas. Sem dúvida o sucesso definidor se deu com “Pense em mim” de Leandro e Leonardo que adaptaram um reggae de 85 e converteram sertanejo festejado. Em 2003, “Ligação urbana” explode com Bruno e Marrone, e, em 2010, outra vez o Trio Parada Dura volta ao tema com “Telefone Mudo”. Entre as mais apimentadas composições, em 2015 Enrique e Diego gravam “Senha do celular” que caiu no gosto popular. Marilia Mendonça, em 2016 aparece como destaque feminino defendendo – já na linha da “sofrência” – o “Me desculpe, mas sou fiel”, e, finalmente “Por telefone não” de Maiara e Maraisa em 2017.
Mas afinal, o que pode o telefone, como tema, explicar a respeito da música sertaneja? E a resposta vem pronta, exatamente na medida em que mostra mais que uma apropriação de instrumentos da modernidade urbana e industrial, um meio de negociar o ajuste de um segmento que reelabora sua memória no ambiente que se lhe abriu, e eles se impuseram. Telefone é um exemplo, mas poderíamos tomar outros como: automóvel, caminhão, relógio e fotografia. O que não se deve é rebaixar a carga de memória em trânsito de afetos, do campo para a cidade. Negociações...
Algumas pautas vieram para ficar. Temas como feminismo e questões de gênero ganharam postos definitivos nas reivindicações por direitos de minorias vulneráveis. Dentre tantas, sem dúvidas, a questão racial reponta como das mais expostas à opinião pública, principalmente depois da publicidade estatística que, via CPI, revelou a assustadora cifra e um jovem negro morto a cada 23 minutos no Brasil. Tendo como referência o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e as reações gerais, a questão exibe vocação planetária e nos coloca todos numa berlinda moral: como chegamos a este ponto?
Uma das conquistas mais eloquentes dos brados antirracistas está em sua qualificação como estrutural. Mas, em essência, o que significa racismo estrutural? Que condição lhe garante este atributo e que diferença faz? A fatalidade da pergunta demanda reconhecer que a noção de escravismo é antiga, antiquíssima aliás, mas a consciência de sua projeção como problema crônico no presente é jovem e desafiadora de reversões. Desde sempre falamos da escravidão como sistema, e não faltam historiadores que passam a vida desvelando os mecanismos da dominação de uns sobre outros, de brancos sobre negros e indígenas, tudo sob a imposição do lucro. Com o tempo, a absorção mecânica dessa fórmula deformou o lábio, mas, por fim, o cachimbo caiu. Mesmo libertos, no geral, o negro continua marginalizado, lutando para tornar verdade o preceito romântico de liberdade, igualdade e fraternidade. Então, frente ao fracasso, o pretérito se abre para a pergunta que não consegue mais calar: como não notamos isto antes? Por que não entendemos o drama que tanto nos envergonha?
A, insistência das desigualdades fez o que era cômodo para uns virar insuportável para outros e a explosão não mais segura mágoas acumuladas em transcendentais memórias de dor. A consciência de classe de grupos atingidos ganhou força e organização, e uma solidariedade racial se tece costurando experiências diversas que, aliás, se valem da própria problemática para reclamar direitos estabelecidos. E temos que aprender mais que o diálogo simples, o exercício de convívio como o excluído que se faz notar. Urge superar as cabíveis tramas das diferenças e entender a sanha da raiva e da vingança expressas pelas manifestações comunitárias de quantos padecem submissões, muitas nem sempre tão sutis. Difícil. Difícil sobretudo porque antes temos que acertar uma conta moral, nossa, de brancos que se valeram da cor da pele para dominar. E isto demanda assumir a história. É precisamente neste ponto que atua a questão estrutural. Vejamos um exemplo eloquente, 97% dos nossos parlamentares são brancos, em um país com 54% de negros.
Racismo estrutural é conceito exercitado para dimensionar experiências de sociedades que se organizaram com base na hierarquia secular de mandos, segundos critérios culturais e práticos, ambos discriminatórios. Proprietários – no caso do Brasil, brancos cristãos – se aparelharam com leis e preceitos de controle de grupos submissos, regidos pelo que foi o maior negócio da humanidade em todos os tempos: o longo tráfico negreiro. Criou-se, portanto, no jogo de relações universais um birrento sistema racista. Com aberturas calibradas e com variações contidas, em diversos espaços, a mobilidade social foi sendo estratificada e tornou-se conveniente. Nesta linha, convém lembrar que o Brasil foi o país que maior número de escravos recebeu – mais de 4,2 milhões – e figura entre os últimos a “libertar os escravos”. E tem mais, a Lei que decretou tal condição foi estabelecida no âmbito do poder dominante que cuidou de não planejar a reinserção do contingente nos projetos nacionais. Pelo contrário, nossa Abolição equivaleu a condenação à marginalidade.
Libertos sem ter a condição constitucional de cidadania, os negros não puderam integrar, por exemplo, o ensino público ou se valer de cuidados da saúde. Sem meios elementares de competição, não conseguiram concorrer com vantagens favoráveis dadas aos imigrantes que se aproveitaram da Lei de Terras de 1850. Reverso, numa relação de direitos invertidos, os brancos estrangeiros se integraram progressivamente, enquanto os “libertados”, sem educação formal e acesso ao trabalho, vagariam à margem do sistema. Em 1890, a Lei dos Vadios e Capoeiras, por exemplo, cuidava dos negros sem condições de pertencimento à sociedade de classes, e, assim inaugurava-se um problema continuado em nossa realidade: a prisão cheia de descendentes de escravos. E a marginalidade legal, consideremos, perdurou até 1951, com a Lei Afonso Arinos que enquadrou o racismo como crime. Ao longo de anos, sem direitos à participação legítima, a cultura branca cultivou mitos da democracia racial e os morros foram se enchendo de contingentes sem chances de pertencimento efetivo no corpo nacional. Ah, a democracia racial!... Ah o Brasil sem preconceitos...
Não haveria exagero algum em afirmar que estruturalmente fomos educados para não admitir que somos racistas crônicos e, agora, admitir a premência do reconhecimento de uma cultura de exclusão é o primeiro passo para que se consiga uma sociedade minimamente mais justa e pouco mais igualitária. Comecemos, pois por acatar nosso pecado original: a escravidão mal resolvida. A partir disto poderemos assumir que antirracismo não é ter um amigo ou um vizinho preto, tratar a empregada como alguém da família, ou criticar o que se vê nos Estados Unidos ou na África do Sul. Ser antirracista é, em primeiro lugar, assumir que fomos plasmados numa história que não nos permitiu ver o quanto cruel e violento fomos. Isto implica consentir nosso pecado original e revertê-lo. Falo de cotas raciais em primeiro lugar. Cotas, batismo da remissão necessária porque justa. Amém.