SOMOS TODOS RACISTAS: nosso pecado original.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Algumas pautas vieram para ficar. Temas como feminismo e questões de gênero ganharam postos definitivos nas reivindicações por direitos de minorias vulneráveis. Dentre tantas, sem dúvidas, a questão racial reponta como das mais expostas à opinião pública, principalmente depois da publicidade estatística que, via CPI, revelou a assustadora cifra e um jovem negro morto a cada 23 minutos no Brasil. Tendo como referência o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e as reações gerais, a questão exibe vocação planetária e nos coloca todos numa berlinda moral: como chegamos a este ponto?
Uma das conquistas mais eloquentes dos brados antirracistas está em sua qualificação como estrutural. Mas, em essência, o que significa racismo estrutural? Que condição lhe garante este atributo e que diferença faz? A fatalidade da pergunta demanda reconhecer que a noção de escravismo é antiga, antiquíssima aliás, mas a consciência de sua projeção como problema crônico no presente é jovem e desafiadora de reversões. Desde sempre falamos da escravidão como sistema, e não faltam historiadores que passam a vida desvelando os mecanismos da dominação de uns sobre outros, de brancos sobre negros e indígenas, tudo sob a imposição do lucro. Com o tempo, a absorção mecânica dessa fórmula deformou o lábio, mas, por fim, o cachimbo caiu. Mesmo libertos, no geral, o negro continua marginalizado, lutando para tornar verdade o preceito romântico de liberdade, igualdade e fraternidade. Então, frente ao fracasso, o pretérito se abre para a pergunta que não consegue mais calar: como não notamos isto antes? Por que não entendemos o drama que tanto nos envergonha?
A, insistência das desigualdades fez o que era cômodo para uns virar insuportável para outros e a explosão não mais segura mágoas acumuladas em transcendentais memórias de dor. A consciência de classe de grupos atingidos ganhou força e organização, e uma solidariedade racial se tece costurando experiências diversas que, aliás, se valem da própria problemática para reclamar direitos estabelecidos. E temos que aprender mais que o diálogo simples, o exercício de convívio como o excluído que se faz notar. Urge superar as cabíveis tramas das diferenças e entender a sanha da raiva e da vingança expressas pelas manifestações comunitárias de quantos padecem submissões, muitas nem sempre tão sutis. Difícil. Difícil sobretudo porque antes temos que acertar uma conta moral, nossa, de brancos que se valeram da cor da pele para dominar. E isto demanda assumir a história. É precisamente neste ponto que atua a questão estrutural. Vejamos um exemplo eloquente, 97% dos nossos parlamentares são brancos, em um país com 54% de negros.
Racismo estrutural é conceito exercitado para dimensionar experiências de sociedades que se organizaram com base na hierarquia secular de mandos, segundos critérios culturais e práticos, ambos discriminatórios. Proprietários – no caso do Brasil, brancos cristãos – se aparelharam com leis e preceitos de controle de grupos submissos, regidos pelo que foi o maior negócio da humanidade em todos os tempos: o longo tráfico negreiro. Criou-se, portanto, no jogo de relações universais um birrento sistema racista. Com aberturas calibradas e com variações contidas, em diversos espaços, a mobilidade social foi sendo estratificada e tornou-se conveniente. Nesta linha, convém lembrar que o Brasil foi o país que maior número de escravos recebeu – mais de 4,2 milhões – e figura entre os últimos a “libertar os escravos”. E tem mais, a Lei que decretou tal condição foi estabelecida no âmbito do poder dominante que cuidou de não planejar a reinserção do contingente nos projetos nacionais. Pelo contrário, nossa Abolição equivaleu a condenação à marginalidade.
Libertos sem ter a condição constitucional de cidadania, os negros não puderam integrar, por exemplo, o ensino público ou se valer de cuidados da saúde. Sem meios elementares de competição, não conseguiram concorrer com vantagens favoráveis dadas aos imigrantes que se aproveitaram da Lei de Terras de 1850. Reverso, numa relação de direitos invertidos, os brancos estrangeiros se integraram progressivamente, enquanto os “libertados”, sem educação formal e acesso ao trabalho, vagariam à margem do sistema. Em 1890, a Lei dos Vadios e Capoeiras, por exemplo, cuidava dos negros sem condições de pertencimento à sociedade de classes, e, assim inaugurava-se um problema continuado em nossa realidade: a prisão cheia de descendentes de escravos. E a marginalidade legal, consideremos, perdurou até 1951, com a Lei Afonso Arinos que enquadrou o racismo como crime. Ao longo de anos, sem direitos à participação legítima, a cultura branca cultivou mitos da democracia racial e os morros foram se enchendo de contingentes sem chances de pertencimento efetivo no corpo nacional. Ah, a democracia racial!... Ah o Brasil sem preconceitos...
Não haveria exagero algum em afirmar que estruturalmente fomos educados para não admitir que somos racistas crônicos e, agora, admitir a premência do reconhecimento de uma cultura de exclusão é o primeiro passo para que se consiga uma sociedade minimamente mais justa e pouco mais igualitária. Comecemos, pois por acatar nosso pecado original: a escravidão mal resolvida. A partir disto poderemos assumir que antirracismo não é ter um amigo ou um vizinho preto, tratar a empregada como alguém da família, ou criticar o que se vê nos Estados Unidos ou na África do Sul. Ser antirracista é, em primeiro lugar, assumir que fomos plasmados numa história que não nos permitiu ver o quanto cruel e violento fomos. Isto implica consentir nosso pecado original e revertê-lo. Falo de cotas raciais em primeiro lugar. Cotas, batismo da remissão necessária porque justa. Amém.
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