quarta-feira, 26 de agosto de 2020

CONTANDO A VIDA 312

 E O VENTO LEVOU... 


José Carlos Sebe Bom Meihy 

Meditando sobre os argumentos que integram as agendas atuais, a chamada “questão racial” ganha destaque por diferentes ângulos. Grosso modo, há dois polos que se buscam numa lógica nem sempre bem encaminhada. Aliás, a multiplicação ad nauseam de fatos ilustrativos tem sido embaçada de maneira a não permitir exames explicativos de vocação linear. No lugar, polarizações acabam por lançar tudo num “a favor ou contra”, quase sempre sem substância. Navegando pelos mesmos meandros, situações internacionais se emendam de maneira a compor um quebra-cabeça com peças que misturam jogos diferentes. Não que não haja denominadores comuns entre as diversas causas, elas existem, mas algumas eventuais alternativas remetem à colagem de situações que não se explicam nos meios em que são ambientadas. 

Um pouco por conta da justa campanha contra a violência policial que provocou a morte de George Floyd, em escala mundial, uma série de demonstrações tem vindo à ordem do dia. A tendência ao desmonte de um tipo de história que suportou o tráfico e a escravidão negra muitas vezes frustra pela carência de fundamentos que poderiam melhor instruir pautas justas. Vamos a um exemplo. Há algumas semanas rodou em várias redes sociais uma campanha assaz polêmica por ser chocantemente anacrônica, ou seja, por considerar com olhos de hoje o que não era válido no tempo relatado. Um grupo de pessoas que se dizem antirracistas deflagrou campanha conta o filme “E o vento levou”, clássico do cinema norte-americano de 1939. No ano seguinte, concorrendo ao Oscar a película baseada no livro da jornalista Margaret Mitchell além de arrebatar os principais prêmios, deu ensejo a um fato marcante na história do cinema: pela primeira vez uma atriz negra, Hattie McDaniel, ganhava o troféu. Na ocasião, emocionada, ela declarou “espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para minha raça e para a indústria cinematográfica”. Tendo feito o papel de empregada doméstica, filha de ex-escravos durante a Guerra de Secessão, a atriz concorreu com Olívia de Havilland, preferida. Dear Hattie – como gostava de ser chamada – voltou à cena como foco principal de uma campanha contra a inclusão do clássico filme na lista do HBO. Pelos protocolos da época daquela premiação, os negros não poderiam pisar na famosa passarela vermelha e nem entrar pela mesma porta que os brancos. A retomada dessa lamentável atitude estadunidense valeu como argumento para a pretendida suspensão do filme. Inúmeras personalidades, principalmente da crítica cinematográfica, bradaram contra, e por fim ficou reestabelecido o merecido posto da peça que é considerada entre os dez melhores de toda a história. 

O destaque dado entre nós ao episódio hollywoodiano merece um paralelo importante com algo que se passou no Brasil, também envolvendo uma atriz negra norte-americana. Em junho de 1950, o Teatro Municipal de São Paulo recebia uma famosa companhia de dança que fazia estrondoso sucesso na Broadway. A estrela principal, Katherine Dunham, também conhecida como "matriarca e rainha mãe de dança negra", além de antropóloga, era ativista da causa antirracista e, por isso, personagem de destaque mundial. Ao chegar na capital paulista depois de passagem pelo Rio, teve sua reserva - bem como de todo seu elenco - vetada no então elegante Hotel Esplanada. Profissional responsável, mudou o endereço, fez a apresentação que se repetiu por mais duas semanas provocando delírio das plateias - ainda que a primeira apresentação fosse atrasada pela dificuldade de montagem. De toda forma, na primeira coletiva à imprensa, indignada, pôs a boca no trombone. Os grandes jornais como O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã e Jornal de Notícia, entre outros, alardearam a situação, provocando um debate que merece cuidados dos ativistas brasileiros. 

Os ecos do evento ressoaram fortes também na política. Um dos debates mais intrigantes sobre os preconceitos culturais brasileiros tem sido apagado, principalmente porque envolve de forma direta a figura de Gilberto Freyre. Sim, exatamente o consagrador maior do que ficou conhecido como “mito da democracia racial”, era a esse tempo deputado e fez eloquente discurso apontando o absurdo da situação dizendo que “o fato não deve ficar sem uma palavra de protesto nacional”. E não ficou, pois deu alento à aprovação da Lei Afonso Arinos. Cabe lembrar que o debate sobre a desejável criminalização do racismo teve que superar a fase anterior, quando, na Constituinte de 1946 se deu um desentendimento entre as propostas mais liberais e o partido comunista que percebia a causa como desviante da proposta de “luta de classes”. Assim, modestamente ficou assinalada naquela Carta, no artigo 141, § 5º apenas a proibição à propaganda de preconceitos de raça. Houve algum avanço com a Lei Afonso Arinos que, em 1951 foi promulgada por Vargas, proibindo a discriminação racial, considerando o ato como preconceito de raça e cor da pele. Lembrando que apenas na Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XLII, tivemos a prática do racismo como “crime inafiançável e imprescritível” resta retomar a proposta lembrando que sem uma consistente noção dos fatos nacionais fica difícil o entendimento da moldura nacional do debate sobre racismo. As alusões ao “E o vento levou” e a participação de Katheline Dunham, bem como o reenquadramento de Gilberto Freye e Afonso Arinos comprovam a necessidade de análise dos protagonistas no debate que, infelizmente, hoje mais se parecem com discussões norte-americanas do que propriamente nacionais. 

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