quarta-feira, 16 de setembro de 2020

CONTANDO A VIDA 314

NEGRINHA, LOBATO E O RACISMO ESTRUTURAL BRASILEIRO.

José Carlos Sebe Bom Meihy

“tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida dentro delas. Querem novidade... Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los”.

Monteiro Lobato

 

Sou daqueles que acham que José Bento Monteiro Lobato não precisa de defesa alguma. Também me perfilo entre os muitos leitores e que flanam na magia de sua produção criativa, polêmica, atravessadora de tempos, proponentes de temas de debates apaixonados. Então me engalo de ser daquela geração que José Roberto Withaker chamou de “Filhos de Lobato” e sigo leitura que dá alma a entendimentos cabíveis no corpo de seu tempo. Busco mais compreender do que explicar, diga-se, e assim me solto no embalo que vai além de citações escolhidas fora do ambiente germinal, perversas por mal intencionadas, ignorantes e historicamente desinformadas. Investindo-me do direito de ler em perspectiva, optei por trocar argumentos apedrejadores pelo outro lado de uma moeda que negocia interpretações encolhidas na capacidade de ver além de argumentos isolados, caracterizados em frases mal recortadas, rearranjadas segundo critérios extemporâneos e dirigidos. E não precisei de muito exercício, pois no lampejo da memória logo me veio o conto Negrinha. Atenção: não se pretende com um novo “detalhe” saudar qualquer exceção, mas, pelo reverso, por ele, supor a complexidade do todo. Interessa, diria, contemplar a floresta e não explica-la pela singularidade de única árvore.

Para início aclaramento desta conversa, devo dizer que “Negrinha” é, de Lobato, meu escrito favorito no quesito “conto”. E que história foi dada à menina pobre e órfã que desde os quatro anos fora “criada” como encosto em casa de família “proba”! O ambiente, aliás, se trama desde a apresentação da personagem alvo do caso “Preta?? Não. Fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados”. O retraço biográfico dessa qualificação diz que Negrinha, como era chamada, sem ter nome específico ou referenciado, “nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos de vida, vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre farrapos de esteira e panos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças”. A senhora “dona”, por sua vez, fora assim comparecida “excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada pelos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo no céu”. Não bastasse a sutileza – talvez até explícita demais – Lobato completava o perfil senhoril prá lá de patético: “entaladas as banhas no trono uma cadeira de balanço na sala de jantar, - ali bordava, recebendo as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora, em suma”. Sem economizar deboches o enredo matizava a crueldade de uma matrona branca, inclemente, culturalmente estabelecida em pressupostos escravocratas da qual “o 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava, pois, Negrinha em casa como remédio para os frenesis”. Vivificava-se o que na cultura popular ficou conhecido como “saco de pancadas”, ou seja alguém negro destinado a apanhar ou levar bordoadas capazes de promover a catarse dos senhores.

Poucas passagens da literatura brasileira – pouquíssimas – alçaram tanto vigor no relato dos maltratos dados aos negros, escravos ou libertos e aos seus descendentes. Talvez o limite máximo desse tipo de constatação resida internado neste conto, “Negrinha”, que afinal detalha o monstruoso castigo perpetrado pela senhora Inácia depois da menina deferir a palavra “peste”. Tomando um ovo, o requinte da atrocidade foi vazada da seguinte forma “D. Inácia mesma pô-lo na chaleira de água a ferver e, de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, trêmula, olhar esgazeado, aguardava alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora exclamou: — Venha cá!! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!!”. E como sofreu a menininha que, creiam, era criada como favor aos olhos caritativos, culturalmente dominantes.

A sequência desta contação revela outra aventura da menina negrinha que morreu, por fim, aos sete anos, depois de ser acatada pelas duas sobrinhas que, em mês de férias, na casa da titia encantada com a prole branca, saudava, em contraste perfeito, a vivaz euforia das “pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas”. E foram essas mesmas “pequenotas” que permitiram a episódica aceitação de Negrinha no triângulo branco. Foram as crianças e, sem entender de preconceitos, admitiram que a estranha e deslocada personagem, Negrinha, também tocasse em uma boneca que, aliás, era reprodução feita à imagem e semelhança das sobrinhas visitantes: alvinhas e de cabelos alourados e que, além de angelical, deitada pronunciava “papa”. Fora essa, diga-se, a visão do Paraíso para a rejeitada Negrinha que, afinal com 15 quilos. Magrinha sim, mas sonhando com anjos brancos e de olhos claros, como os da boneca, ou das meninas visitantes.

Voltemos à epígrafe: que Lobato quis transmitir? Preconceito gratuito? Denúncia? Seria simples “causo”? Ou caberia melhor inteligência e sugerir que menos vale um exemplo recortado de um contexto amplo do que a miséria de um “defensismo” sem paisagem analítica? Vale, para encerrar, contextualizar este conto no ambiente eugenista daquele então. Na altura do amadurecimento da crítica cultural brasileira, não resta dúvida da ampla aceitação do mito da superioridade racial branca. É exatamente nesta ordem que se pretende discutir o significado de Negrinha no universo nacional que estruturou o racismo.

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