“ACONTECÊNCIAS”: RUTH GUIMARÃES E AS INGRATIDÕES
VALEPARAIBANAS.
José Carlos Sebe
Bom Meihy
A palavra acontecência é criação de Ruth
Botelho Guimarães... De quem? Ruth Guimarães, mas quem é ela afinal? De onde
vem, o que fez, por que destacá-la? Sei que estas questões são frágeis para
alguns, exatamente para prezadores de romances, contos, textos drenados das
listas de sucessos. Ruth Guimarães é dessas figuras apagadas dos arranjos talhados
por quantos esculpem seus deuses segundo a própria imagem e semelhança. Mas,
haveria razão subjetiva para isso? E não escapam explicitações capazes de
nutrir esquemas preconceituosos, desqualificadores de tipos desiguais como,
aliás, demonstra Eduardo de Assis Duarte. Ruth era mulher, negra, do interior
do estado de São Paulo – de Cachoeira Paulista – e nunca pretendeu trocar seu rincão
por qualquer capital, mesmo tendo cursado Filosofia na USP. Em 1983, na Bienal
Nestlé de Literatura, apresentou-se dizendo sou “mulher, negra,
pobre e caipira”, e a isso poder-se-ia acrescentar “disjuntada”. Por
paradoxal que pareça, Ruth se considerava tributária de Mário de Andrade, e
mesmo tendo sido saudada por críticos como Nelson Werneck Sodré, Érico
Veríssimo, Edgard Cavalheiro, tais loas nunca a apensaram além de escassas
citações marginais.
Seu livro de estreia Água
funda, publicado em 1946, foi prefaciado por Antônio Cândido, aliás, isto não deixa de
ser irônico posto argumento vazado de alguém que pontificava um olhar menor à consideração
dos regionalistas. De toda forma, da mina de Ruth despontaram ainda outros escritos de fôlego como Os Filhos do medo, de 1950, pesquisa
original sobre a figura do diabo; Crônicas
valeparaibanas, de1992, considerações sobre o folclore regional, e a
ficção Contos de cidadezinha de
1996, a respeito dos modos de vida no interior. Pode-se dizer que esse conjunto
de trabalhos representa, juntamente com Lobato e outro valeparaibano – igualmente
esquecido – Valdomiro Silveira, a essência genuína do gênero regionalista do
Vale. Sugere-se, contudo, e não sem sentido, que a própria Ruth foi a escritora
que, de maneira mais exuberante, furou a bolha do exclusivismo localista. Fundamenta-se
tal indicando que além de trabalhos respeitáveis sobre aspectos universais, Ruth
foi tradutora audaciosa de clássicos como Balzac, Dostoievski e Daudet. Não bastasse, escreveu peças
memoráveis e de abrangência, como: As Mães na Lenda e na História; Líderes
Religiosos; Lendas e Fábulas do Brasil; e com justo destaque, o audacioso
Dicionário de Mitologia Grega; isso além de Grandes Enigmas da
História; Medicina Mágica: as simpatias; Lendas e Fábulas do
Brasil...
É
verdade que a profícua produção lhe rendeu Cadeira na Academia Paulista de
Letras, mas, isso é raso em vista de merecimentos. A garantia de perplexidade
induz perguntar: mas afinal quais os entraves para o reconhecimento ampliado desta
autora? Mesmo entre as mulheres (Raquel de Queiroz, Cecília Meireles, Lygia
Fagundes Telles, Clarice Lispector) a figuração de Ruth é diminuta; seria por
ser negra? Em termos de combate ao racismo, com certeza cabe outra observação
fatal, pois nos limites da justiça, tem tocado atenção a Machado de Assis como
afrodescendente, e então, por que motivos Ruth não figuraria nesta almejada
redenção? Será por ser mulher e, sobretudo, mulher negra do interior? Aposta-se
que sim, supondo o formidável esforço para requalificar, em paralelo, Carolina
Maria de Jesus. Moradora da capital paulista, a dúvida sobre os destaques entre
ambas corre por conta de dois aspectos complementares: 1- o alinhamento
estilístico e temático e 2- a leitura política do gênero “diário”. Ruth foi
dona de vernáculo escorreito e coerente com os assuntos em voga na
intelectualidade convencional. Isso, por certo a constelou em vez de
distingui-la, como ocorreu com Carolina. E diário de favelada era algo
testemunhal, urbano e explicável na era da “cidade que mais cresce no mundo”. Supõe-se
então o paralelo contextualizado, pois mais que enquadramento no rótulo “mulher”,
ou “negra”, Ruth insistia em ser “caipira”, aliás, orgulhosa de seu espaço
original. Isolou-se e foi isolada, tudo segundo conveniências. Sintetizando de
outra forma, Ruth se inscreveu no “popular” sem representá-lo, no sentido da
diferença de classe, estilo, modo de pesquisa, filiação literária.
Há,
contudo, um fator a mais a ser considerado: a não requalificação de Ruth
Guimarães pelos quadros regionais. O que tem feito o Vale para a projeção de
sua maior estrela feminina no campo das letras? Nada, absolutamente nada. E
neste diapasão recupero certo tique do meu Vale: a ingratidão vestida de
silêncio. Sim, o Vale do Paraíba não se olha no espelho do reconhecimento local.
Tomando Taubaté como outro exemplo, perguntemos: onde estão homenagens às
figuras maiúsculas da expressão local: o que tem sido feito em relação a Mazzaropi,
a Hebe Camargo, ao Tony e Cely Campelo? Outra vez me valho do “nada” e ressalto
no lamento choroso o brado ignorante e injusto a figuras detratadas como
Monteiro Lobato. Tudo isto é triste, mas fica ainda mais lúgubre quando notamos
que é crônico, institucional, algo encalacrado na memória valeparaibana. É
assim, aliás, que volto a Ruth para repensar a “acontecência”. Acontecência
sinônima da falta de respeito. É tempo para acordar?
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