A LÓGICA DAS FRASES SOLTAS.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Sou leitor de jornais! Sim, entre os rituais de iniciação
do dia – café, redes sociais, e-mails – o mais prezado se reduz a abrir a porta
e colocar o jornal pra dentro de casa. Inevitavelmente me vem à cabeça – dia
sim e outro também – o texto “O homem nu”, do cronista mineiro Fernando Sabino.
O temor de ficar fora, com ou sem a pouca roupa, me apavora. Mas isso passa
logo. A cerimônia das viradas de páginas exige devoção e os preparativos
prévios são apenas os essenciais relativos à higiene: bexiga vazia, dentes
escovados, banho, tudo nesta ordem. Café preparado, a mesma velha xicara acompanha
em goles medidos o tempo da leitura silenciosa e sempre sem pressa. Tudo pode
esperar. Tudo.... E, na cadeira preferida – ah minha cadeira de leitura, mal
sabe do prazer que seu colo me provoca. Orgasmos múltiplos.
Tal é o requinte que devoto à essa prática que as
notícias, por piores que sejam – e têm sido – correm como rio sobre um leito
paciente e que desemboca no mar agitado dos afazeres seguintes. Com tanto
aperfeiçoamento, desenvolvi um jeito próprio de ler jornal. A linha editorial apenas
funciona como pano de fundo, uma espécie de cenário, e dela destaco a seleção
dada por partes. Primeiro as notícias gerais, depois as internacionais,
econômicas, culturais, esportivas. Isso provoca a seleção de cadernos, condição
depurada de anos. Sabe, leio anúncios fúnebres, ofertas de supermercados, previsão
do tempo, a opinião dos leitores e a flutuação do dólar. Só dispenso – não sem
remorso – as fatigantes propagandas de automóveis... Credo!
Pois bem, aos domingos alargo ainda mais o tempo em
coerência com o tamanho ampliado do jornal. Parece que os braços do relógio
também se movimentam mais preguiçosos e o silêncio de minha insistente viuvez
fica ainda mais soturno. Devo confirmar que sou daqueles leitores que tem
sempre uma tesoura às mãos. Recorto artigos, notícias e até propagandas. Nunca as
aproveito, e depois até me irrito com o amontoado dessa prática insana. Foi
assim que juntei sobre minha mesa de trabalho alguns destaques que me chamaram
a atenção e que revisei antes de exterminá-los. O primeiro foi um anúncio (será
que a ainda usam esta palavra? Sei lá, sou do tempo do “reclame” ou
“proclamas”, credo!), eis o “convite”:
“É COM GRANDE PESAR QUE
(NOMES) CONVIDAM PARA A MISSA NA PARÓQUIA (NOME) ÀS 12H DE SEXTA-FEIRA (DATA).
CONFIRME SUA PRESENÇA NO CEL (NÚMERO) OU ASSISTA A TRANSMISSÃO ON LIVE PELO
CANAL DO YOUTUBE DA PARÓQUIA (ENDEREÇO ELETRÔNICO)”.
Precisei reler! Repeti a operação. Respirei fundo. Senti-me
arcaico. Notei que as pessoas continuam morrendo e que ainda são celebradas
missas, mas o script mudou demais. Missa ao meio dia? Nossa, pensei.
Mas, de verdade meu queixo caiu (lembram-se desta expressão “queixo caído”)
quando aprendi que o RSVP poderia ser dado por celular e que a cerimônia seria
transmitida por canal do YouTube. Por certo seria por conta da pandemia, supus.
Uma curiosidade impertinente, porém, me assolou. Resolvi acessar o endereço
eletrônico da Paróquia e por telefone ousei pedir explicações. Tive que me
segurar ao saber que essa prática “está em vigor” (sim eles usaram esta
expressão “em vigor”) há mais de dois anos. Mediante meu silêncio, como que evocando
uma ressureição, ouvi da voz do outro lado da linha a cruel sentença “meu
senhor, Deus é onipresente, onipotente e onisciente”. “Bati o fone no gancho”
(ou melhor, “desliguei”). Desliguei e conclui que daqui a alguns anos não mais
terei o prazer de ler jornal. Pior: creio que serei lido por ele, graças à
evolução.
Juro que essa experiência me abalou. Tanto fiquei chocado
que me vi ressuscitado por outra chamada, do mesmo jornal, no mesmo dia:
“VOCÊ PODE NÃO SE APAIXONAR
NA AMAZON, MAS PODE NUMA LIVRARIA”.
Aqui, o argumento é reverso: a mediação eletrônica
atrapalharia a circunstância do encontro. O apelo passional direto merece
destaque pela intransferência, e, pelo contrário, apelaria para necessidade
intransferível de contatos presenciais. No caso da missa, era Deus o agente
unificador, abstrato, poderoso, anulador de entraves. Já na livraria o livro
justificaria junções. Dando asas a voos desvairados, pensei no paradoxal posto
entender que Deus é o Verbo Divino encardo e, assim, no caso da igreja poderia
promover uniões virtuais, mas no caso das palavras escritas, dos livros, tudo
teria que ser cara a cara, ou seja, parodiando o verbo seria humano. E as horas
correram. Eu, entre uma coisa e outra, voltava a pensar nas ambiguidades da
eletrônica. Se cheguei a um termo? Creio que sim: continuo sem entender os
caminhos da humanidade e da mediação eletrônica. É bom que siga assim, até que
eu morra apaixonado pelo livro da vida. Depois, depois Deus explicará os
contatos virtuais. Ah! Se alguém se comover com minha morte, se não puder me
velar presencialmente, pode fazer pelo canal virtual...
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