MEU MELHOR AMIGO DESCONHECIDO: Eric Nepomuceno.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Quando era criança, bem menino ainda, tinha um amigo invisível. Alfredo era o nome dele. E com o tal Alfredo confidenciava minhas infelicidades mal brotadas. Cresci um pouco e fui parar num colégio interno. Aluno por demais comportado, por mim adentro soltava iras revoltadas. Alfredo me ouvia cumplice, impávido, fiel, presente. E eu reclamando chorava, maldizia a vida mapeando labirintos futuros. Com os anos fui esquecendo e não mais soube do Alfredo. Desapareceu. Sumiu. Lembrei-me dessa passagem pouco tempo atrás, precisamente dia 20 de setembro de 2020. Confesso que tanto 20 me assustava, seria prenúncio? Li no jornal um artigo intitulado “Eduardo Galeano, um homem de dúvidas” assinado por Eric Nepomuceno. As palavras do texto, letra por letra, frase por frase, me exigiram um certo passado. Mais do que Galeano – que por si só bastaria – me indagava sobre o recado dado pela referência ao uruguaio fraterno que adotou como seu o dono do artigo. E dei estrada para a figura do jornalista, tradutor, escritor, sobretudo para o memorialista Eric Nepomuceno. Profícuo senhor de extensa obra, de um jeito ou de outro minha sombra sempre acompanhou seus retraços críticos, seus contos e reportagem. Eric me trazia de volta o agora velho Alfredo.
Sabe aquela flor discreta desapercebida num canteiro de rosas expostas? Para mim Eric sempre foi assim. Mais complexo e brilhante que muito outros exemplares da flora literária, ele sempre esteve presente, sem nunca se afigurar com pares competitivos tais Guimarães, Jorges, Clarices ou Caios. Discreto, talvez tenha se disfarçado atrás do incômodo cigarro, da barba que me faz imaginar sua cara lisa, dos óculos arredondados, ou mesmo perdido nas fronteiras de textos indecisos na determinação formal. E que dizer do som de sua voz calma na aparência, diabólica nos elogios sempre fundamentados. Soube outro dia que ele morou em São José dos Campos e imaginei nisso alguma misteriosa tangência – sou do mesmo Vale. Ilusão, ilusão tola, não era por aí. Na verdade, uma sonda breve bastou para garantir que fora pela escrita que Eric se tornou o meu Nepomuceno iluminado, aquele que volta e meia dialoga comigo e me faz pensar na oportunidade da escrita. Tanto ele usa a própria geração como fator explicativo de um tônus cultural que o imagino síntese de tudo e de todos que viveram os anos lagrimados em ditaduras excludentes. Eric Nepomuceno, vida afora, perseguidor de setentões distópicos navegantes de inexplicadas histórias.
Frente o texto do artigo sobre Galeno, resolvi dar alguma satisfação a esse meu relacionamento unilateral; unilateral, mas suficiente para conferir alma à essa estranha maneira de sentir alguém que exerce poder sobre minha vontade de cultura. Diria que foi pelo culto à memória que o me expliquei. Como poucos Eric Nepomuceno conta, fala de si e redesenha seus amigos mais que amados. Leitor sinto-me parte dessas conversas e amo todos num fogaréu lenhado por Garcia Marques, Rulfo, Certázar, Borges, Lygia, Hatoum, Salem. E não faltam livrarias, restaurantes bares e confidências, muitas confidências, despedidas fatais. E tudo é tão suave em Eric, tão redondo que me deixo perder nas curvas de um pretérito que me converte, a cada vez mais, em latino-americano. E narrativas somadas convergem para uma autenticidade que não se melindra na consideração de Hemingway, Baldwin, Ondjaki.
Com contação feita de saudade e bom gosto, seus os textos Nepumiceneados são bastantes e suas falas mais parecem suplemento de tantas, incríveis, aventuras literárias. E fala também de cozinha, de guiar automóveis, de bebidas, e assim pouco escapa de sua escrita despontada lá atrás, na adolescência de leitor continuado. É verdade que não há como se referir a Eric sem mencionar suas traduções. Premiado, faz do reconhecimento objeto de valor indicativo, mas nada que corrija a rota de novos céus. Tenho comigo, porém que a tradução – ele garante que faz “tradução afetiva” – resulta de finezas raras, doação total, um colocar-se no lugar do autor de maneira a se trançar-se além da técnica ou do domínio da língua.
A mim, em sua ficção, particularmente chama a atenção as histórias de linhagens familiares. É aí que saindo da escrita, o pai real surge e dele emerge o filho Felipe, cineasta que o reinventa como comunicador. Mas isso é destilado. Ao contar, por exemplo, os encontros de seu pai cientista com Darcy Ribeiro faz vibrar nos leitores a imagem de compromissos sociais cumpridos na moldura única da democracia. Eric se exilou e consigo levou o Brasil para sua América Latina, e, então Montevidéu, Buenos Aires, a Cidade do México tornam-se cenários esparramados de uma ternura política quase infantil. Não satisfeito em escrever – e contar como faz bendizendo as papelarias, o lápis e o papel – precisou da imagem e então, como na ficção agora faz pequenos clips que posta nas redes sociais e estão disponíveis no youtube (https://www.youtube.com/watch?v=P6dK2Acsq4k).
Devo dizer que estive pessoalmente com Eric apenas uma vez. E foi em situação confusa. Renato Teixeira se apresentaria um show no Rio e me senti convidado. Fui. Chorei muito e ao final fui abraçar meu menestrel cumplice de vida. Surpresa absoluta, Eric estava lá. Eu o reconheci, disse ser seu leitor e me intimidei ao mencionar que por vezes fui seu vizinho nas páginas do Contato, reunido por editor comum. Foi assim, algo sem muita graça e com toda a disfarçável naturalidade que o momento impunha que o vi pessoalmente uma única vez. Estrela cadente que além de tudo me faz pensar no velho Alfredo, meu amigo invisível.
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