ACASOS, COINCIDÊNCIAS, DESTINO... SORTE OU AZAR?
(Mistérios da sala 904)
José Carlos Sebe Bom Meihy
É parte integrante da conversação árabe repetir “tudo está escrito”. Em particular os setores religiosos acreditam que nada acontece fora do comando de uma força absoluta, dona de todos os traçados, senhora dos tempos, onipresente, onisciente, onipotente. “Maktub”, dizem!... A palavra kitub, aliás, significa “livro” e mak “estar lá”, “gravado”. Assim, pelo valor sagrado da escrita, a tradição da fatalidade inevitável não descola nossa submissão dos desígnios de um destino demarcado, preexistente, e do qual não escapamos. Essa certeza inegociável para qualquer crente deriva de uma raiz islâmica que foi filtrada também pelo cristianismo, sem deixar de se fazer presente no messianismo judaico. Aliás, a tradição dos profetas deriva de tal pressuposto que se imiscuiu inclusive nas adivinhações tão caras aos videntes e cartomantes. E haja ciganas, tarôs, quiromancia...
É claro que as divergências sobre o poder total dos destinos fizeram germinar árduos debates teológicos que no Ocidente se intensificaram a partir de Santo Agostinho, sendo levados ao limite polêmico por Lutero, Calvino, Erasmo e tantos outros. Como tema candente da Reforma Protestante, o chamado “livre-arbítrio”, ou direito de escolha e interpretação das Escrituras, esquivou-se da erudição dos “doutores da Lei” e encontrou abrigo na literatura popular – no Brasil Júlio César Mello e Souza (Malba Tahan) e Paulo Coelho, são expressões destacadas dessa linhagem. Segundo tais preceitos, o significado do devir marcado por determinações superiores atinge a todos, tornando o assunto uma espécie de garantia de nosso alcance ou domínio sobre nossas escolhas e eventuais desvios. Dimensão de um barroquismo prolongado, entre nós esse dilema se expressa na chamada sabedoria popular com ditos sempre prontos como: “pois é, tinha que ser”, “Deus quis assim”, “estava escrito nas estrelas”, “o que é do homem, o gato não come”, e daí por diante... O inescapável então torna-se tanto explicador de fatos notáveis como de situações corriqueiras, todas incontornáveis.
Essas reflexões me vieram à lembrança ao deparar com uma situação singular ocorrida recentemente na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Antes de ir aos fatos, imaginemos a intensidade da mágoa que a recém eleita vereadora Mônica Benício (PSOL) nutre em relação ao filho do presidente, o 03, Carlos Bolsonaro. Viúva de Marielle Franco, assassinada por supostos mandados milicianos ligados à família do ex capitão, por sorteio o número de seu gabinete na Câmara foi 904. Nada demais, ainda que certos numerólogos temerosos lembrassem que a soma é 13. Pois bem, creio que isso seria absorvido com alguma naturalidade não fosse uma outra coincidência adicional e até chocante: Mônica terá como vizinho o reeleito vereador Carlos Bolsonaro. E tem mais, vejam como o acaso caprichou nessa história, eram 17 novatos e entre tantas possibilidades o destino (“destino”?) tramou tudo, sorteio feito, sorte lançada e a eis a dança do acaso. Além do vizinho à esquerda, o 3, tratava-se exatamente do gabinete ao lado do que antes era ocupado pela própria Marielle. Não bastasse tudo isso, a sala fica porta a porta com um aliado na busca de responsabilidades daquele extermínio político, um tipo que também marca igual pressão na busca dos assassinos, o edil Márcio Santos de Araújo (PTB). Vale dizer em complemento que este vereador ostenta na porta uma placa chamativa indagando “Quem mandou matar Marielle?”. Sobre essa série de “estranhas coincidências” Mônica Benício, admirada, declarou à coluna de Ancelmo Góis nO GLOBO “onde quer que esteja, ela (Marielle) deve estar rindo de mim. De tantos gabinetes para eu sortear, acabo ficando ao lado daquele que ela ocupou e ao lado de outro (Carlos Bolsonaro) com pautas bem diferentes das nossas”.
A fermentar tantas ironias, cabe lembrar que as portas dos escritórios de muitos vereadores contém mensagens reveladoras de suas posições e posicionamentos que dialogam com fatos marcantes, e, no caso do 03, não seria diferente. Alguns adesivos denunciando que “partidos de esquerda incentivam invasões” se compõem com outros – estes muito mais consequentes – que questionam “Quem mandou matar Bolsonaro?”. As expectativas de boa vizinhança são esperadas. Democracia implica mediação com as diferenças, diálogo com os desiguais, principalmente em situação de debates em favor das causas da população. Em termos filosóficos ou religiosos, porém, a coisa se complica muito. Teria tudo isto sido uma cilada do destino? O acaso teria conspirado a favor do diálogo (ou da intriga)? Mistérios.
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