quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

CONTANDO A VIDA 330

 A MORAL DA VACINA... OU A VACINA IMORAL.


José Carlos Sebe Bom Meihy


Sei de muitos que como eu estão estonteados com questões afeitas à ética neste tempo dominado pela Covid 19. Sem dúvidas, o confinamento tem promovido alterações nas relações humanas, e as redes sociais cumprem papeis compensatórios no isolamento. A urgência mecânica das comunicações eletrônicas, por sua vez, tem apressado raciocínios e o apelo para respostas instantâneas anda anulado espaços de ponderações. Tudo é “para ontem”, e essa pressa nos obriga a respostas que ficam devendo ao bom senso. Por vezes, me vejo perdido em meio a arrependimentos, repetindo para meus botões: pois é, poderia ter esperado um pouco mais, ajuizado melhor, antes de responder a esta ou àquela instigação.

A propósito, lembrei-me de uma historinha que ilumina perplexidades repontadas no terreno da lógica e da moral modernas. Vamos a ela “era uma vez um atendente de loja de laticínios que teria que prestar serviço a uma fila que ia longe. Basicamente, ele se dividia entre venda de presunto e de queijo. Mediante reclamações pela demora no fatiamento, optou por potencializar o melhor atendimento separando duas filas: os que queriam presunto à esquerda, os que buscavam queijo à direita. Para ele foi um alento, posto que não precisava trocar a mercadoria a cada freguês”. Pois bem, em termos de gestão não há o que reparar nessa conduta racional, né?! Analisemos, contudo o dilema: de um lado, o servente teve seu mister facilitado, a fila andava célere e ele exercia a eficiência requerida. Fordismo aplicado. Instalou-se, porém, um outro problema: e quem quisesse ambos? E mais grave ainda, qual o sentido de chegar primeiro e compor a fila? Que critério seria praticado para determinar o momento de mudança de uma para outra peça? Esta espécie de “parábola capitalista” se me acentuou frente ao controle da aplicação das vacinas contra o vírus da Covid 19. Vejamos...

Os jornais têm noticiado, com insistente indignação, aberrantes casos de pessoas que corrompem a ordem estabelecida e furam as filas das vacinas. Vejam que estou falando de cerca de 3 mil denúncias comprovadas. Nem vou discutir questões de ansiedade coletiva, de direito natural à luta pela vida, pois tais inerências são instintivas e, diga-se, os animais também as exercitam. Mas estamos tocando na situação de pessoas, gente que vive em sociedade segundo pactos sociais firmados. Frente à inevitável agressão ao sentido de vida pública, levanta-se uma questão imposta pela crueza das consequências: como agir? Que fazer então? A pergunta que está no ar exige respostas: os furões, merecem tomar a segunda dose? Que devem ser punidos é resposta pronta, mas não é tão simples assim, pois outro problema se apresenta: mas e a “imunização de rebanho”? Caso confirme-se a segunda aplicação, não estaríamos dando bençãos à ação bandida e admitindo injustiças? A quem compete decidir sobre essa matéria, aos juízes ou os infectologistas? Notemos que os transgressores são sempre autoridades, empresários, políticos, gente de poder, tipos que deveriam dar exemplo. E a piorar tudo temos que ter claro: desperdiçar doses jamais!

Frente à essas questões de fundo moral preside uma alternativa que vem sendo cultivada em particular por defensores da aplicação do Direito Público: mesmo os errados devem sim receber a segunda dose, mas merecem outras penalidades severas (discute-se a reclusão de 1 a 3 anos + multa). Vago, né? Vago, mas indicador de uma alternativa que conduz aos argumentos dos infectologistas: a responsabilidade também é da vigilância sanitária que não teve competência para barrar os infratores. Não há como deixar de considerar a responsabilidades de órgãos de comando central – municipal, estadual e federal principalmente. A discussão está colocada a público e judicializada a partir de um caso que serve de parâmetro nacional: o de Manaus, a cidade com maior número proporcional de infectados no planeta. Como se sabe, na capital amazonense duas jovens médicas, filhas de empresário destacado na economia local, tomaram sem devido respeito a primeira dose. O fato foi amplamente mostrado pela mídia. O Ministério Público Federal, frente a isso, condenou a atitude, mas abriu brecha para que as irmãs tenham acesso à dose complementar. E daí? Como nos posicionar?

No meu foro pessoal, esforço-me para ter uma resposta coerente, acontece, porém que a cada certeza alcançada resta alargar a responsabilidade do bem comum. Elas erram sim, mas no conjunto a atitude equivocada tem um efeito coletivo ao engrossar a lista final de imunizados. E, ademais, não podemos isolar os gestores que permitiram tais atos. Não mesmo. É aí que entra o personagem ausente: o governo em diferentes escalas, setor que tinha que assumir comando firme de tudo. Que se aplique a segunda dose, puna-se exemplarmente os corruptores e que saibamos cobrar a conta de tanta incúria nas próximas eleições. Tudo sem esquecer que entre os “larápios beneficiados” e nós estão os mediadores que nos representam.

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