UMA JANELA NO MEU TEMPO PANDÊMICO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Em pleno confinamento, imerso em sentimentos curtidos ao longo de mais de um ano restrito às paredes de casa, decretei alforria aos pessimismos escravizados em minhas senzalas pessoais. Soltei as agonias enroscadas nas farpas do tempo pandêmico e resolvi flanar, propor enredo à história deste meu/nosso momento extraordinário. Dei, consciente, ar a tanta fantasia que ensaiava mofo e nela aos enleios que insistiram em buscas de supostos campos de alfazema. Para tanto, por um bom momento, deixei quieto os noticiários, desliguei informações de políticas, apaguei dores por mortes de parentes, amigos, conhecidos ou não, e me permiti supor que estatísticas são poções de um feitiço imaginado, ficção pura. Na mesma toada, dei corda às ilusões que transformavam contaminados em anjos barrocos, e cuidadores em mestres de folguedos, algo próximo das gravuras de Heitor dos Prazeres, das músicas infantis de Toquinho e do ballet de Copélia. E foi muito bom.
Troquei recursos que abusam de sons por sonatas melodiosas, ouvi o mar imaginado, adivinhei matas em verdes plenos, dei acalanto às flores convencionais, coloridas e perfumadas. Ouvi silente o silêncio e nele a mansa voz católica de Adelia Prado declamando seu verso mais oportuno, “Janela”:
Janela, palavra linda/
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
Janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
Meu pé esbarra no chão/
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi o casamento da Anita esperando neném,
A mãe do Pedro Cisterna urinando na chuva,
Por onde vi meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai: minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão, claraboia na minha alma,
olho no meu coração.
E esvaziado de ruins, pude gozar dos registros sobre meu distanciamento social cumprido. A solenidade do diálogo pessoal impôs brandura e compaixão. Periodizei etapas sob o critério da busca de alternativas redentoras, e, com certo apreço, reconheci o primeiro esforço: arrumar a casa, olhar os cantos do meu canto e reconhecê-los como lar: armários refeitos, roupas dispensadas, revisão de objetos descartáveis, diria que gastei os primeiros dois ou três meses driblando o medo trocando-o pela reorientação caseira. Era como me preparar para uma visita íntima, com o mais centrado encontro de mim com meu eu purificado. Dessa fase, talvez a lição maior tenha sido a constatação de que poderia viver com bem menos, sem alguns luxos tolos.
Diria que meu segundo movimento foi estabelecer ações que me davam prazer e que poderiam me ligar a outras pessoas, sem riscos. E cozinhar virou um verbo conjugado diariamente, sob a pretensão de ajudar duas vizinhas dependentes de assistência. Foram meses de envios quase diários e estabelecimento de afetos que nutriram aquelas duas vidas que, infelizmente, chegaram a termo no mês passado. No pulso desse movimento, troquei a obrigação pela gostosura e me melhorei como cozinheiro. E cresci como gente também. Na mesma sanha, defini que elegeria alguns poucos amigos para conversas semanais. Logo eu que detesto telefone, me deixei atrair por uma experiência que tanto conforto me trouxe. Optei por fazer diferença em um grupo de amigos de WhatsApp e me dediquei como causa amorosa, tentando encurtar distâncias e conhecer melhor quantos julgava saber.
Rendo graças a uma prática que aprendi no confinamento do menino de um colégio interno que fui: ler... Alguma luz divinal sugeriu que eu ordenasse algumas leituras de maneira a corrigir minha formação sempre fragmentada. Proust se me apresentou e resolvi retomar página, por página os sete livros que compõem “Em Busca do tempo perdido”. Nossa, foi uma viagem no país da memória. Nova série me plenificou bastante na visita dos “Sermões do Padre Antônio Vieira. Foram meses perfilando entendimento e admiração. Senti-me mais maneirista que nunca justificando Pessoa ao coroá-lo “imperador da língua portuguesa”. E passei para outra esfera ao ler tudo de Lobato, da obra infantil à adulta. Devo dizer que neste quesito briguei com a crítica, me vi convidado a perpetrar artigos, e lastimar o que tentam fazer com o nosso “taubateano rebelde”. Além dessas três séries, outros textos repontaram como brisa no escaldo de um verão louco.
Escrevi muito. Muito. Mais do que nunca, e pela escrita pude filtrar significados da passagem solitária pela pandemia. Essa foi/tem sido outra grande lição, a consciência da solitude. Trabalhando em casa, precisei aprender a dividir o tempo e não me permitir alucinar com a astúcia de sua passagem. Minhas recentes fases têm sido difíceis, pois não há como disfarçar a dor tantos amigos que partiram. É muito triste e esse imponderável me abate de jeito irremediável. Mas se é possível extrair alguma lição desta experiência coletiva, se puder superar o desdém de autoridades culpadas, e neste esforço recortar uma moral para a história da pandemia, com certeza diria que ela me valeu como a tal janela indicada por Adélia Prado, aquela de folhas que tanto se abrem “pra dentro e pra fora” e que, sobretudo, funcionam como “claraboia na minha alma, olho no coração”. Estou aberto ao que vier. Purificado. Grato por chegar até aqui, esperançoso de ir até lá, mas com a certeza de que fiz o melhor que pude abrindo minhas janelas “como asas de uma borboleta amarela”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário