BREVE HISTÓRIA DO NOSSO DESESPERO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Eram dias difíceis. Há pouco mais de um ano, vivíamos um choque de realidade inimaginável. A pandemia definida ainda em 2019 se avultava em figuração gigantesca. Sustos. Desesperos. Agitos mundiais. O planeta se amedrontava com o progressivo número de mortes lidas como ameaças apocalípticas. Temia-se, com evidências, o inferno na Terra e os demônios, sem disfarces, estavam soltos, bêbados e esfomeados, incontrolados, nos buscando. Sem medicamentos alcançáveis, sem estruturas médico-hospitalares, com o noticiário inflamado, restava o formidável abraço do pânico. O medo e a apreensão eram regras: que será de nós? A já anunciada vacina estava distante e a cloroquina, mostrada como bala de prata, dava passagem para uma política capaz de justificar a estratégia da imunidade de rebanho.
As experiências brasileiras eram demonstradas em registros horripilantes: sequências tétricas de enterros, fúria popular em busca de atendimentos, exaustão do pessoal da saúde. Chorou-se muito, nossa! Viu-se logo que não se tratava de mera gripezinha. Aliás, o que se notava era o resultado de um negacionismo integrado a um projeto de mudança de rumo da forma de governo. E começava uma guerra consequente contra o ambiente da ciência, colocando-se no lugar uma religiosidade sem teologia sustentável, assentada no comportamento de seguidores fanáticos. Se o mundo não seria o mesmo, no Brasil tudo se agravava ao ponto de logo termos uma das piores reputações no quadrante universal. Jamais seríamos os mesmos. Jamais.
Olavo de Carvalho, lá de seu escritório em Virginia, nos Estados Unidos, entre palavrões e murros na mesa, destilava mandamentos seguidos por terraplanistas ávidos da desmontagem institucional. O neoliberalismo pululava em delírios quiméricos, consagradores do progresso econômico acima de tudo e de todos. E nosso cotidiano era sufocado pelo destempero guiado pelo pavor do futuro mortal e galopante. A dicção mal resolvida do presidente da república exarava impropérios de repetição desnecessária. De certa forma, as lições da Guerra Fria consubstanciadas na polarização política ecoavam confundindo esperanças com alarmes. Entre um lado e outro, era dado o caminho para a desarmonia que, plantada no solo fértil da corrupção estrutural e da noção de falibilidade da utopia, fazia emergir um novo messias. Tosco. Inculto. Desrespeitoso, com filhos moldados em falcatruas nunca esclarecidas, estávamos jogados às traças que corroíam nossas resistências. Resultado: hoje quase quinhentas mil mortes, com promessas de muitas outras.
Populismo pelo avesso, em nome da renovação e da nova política, um ex-capitão, chamado de “mau militar” pelo ditador Ernesto Geisel, se arvorava redentor da ordem, da moral e dos bons costumes. Com ele empoderado, afiavam-se, em nome de novidades, as velhas garras da violência institucionalizada em nossa história. Se o processo de denúncia das agressões às mulheres, aos negros, homossexuais, estava em marcha lenta, com a tomada do comando de um segmento hegemônico branco, tudo ganhou vertigem de extermínio. Naquele momento, o que era ruim virou péssimo, e então o latente conservadorismo se mostrou sem alcance de correção. Feminicídios, mortes de negros e favelados, ataques a gays se juntaram ao sufoco proposto às comunidades indígenas, quilombolas, comunidades pobres. Encerrados em lares, viramos espectadores de um programa metodicamente preparado para a destruição.
Fogo. Muito fogo foi ateado nas florestas, matas, manguezais arrasados, animais mortos aos milhares. E o covid19 grassando a ponto nos colocar em segundo lugar no plantel de perdas de vida mundo afora. Faltava-nos tudo, além da constatação do governo que não ligava para os contingentes de arrependidos de votos creditados a favor de mudanças necessária. A magnifica resposta dada pela ciência que em curto espaço de tempo provou várias vacinas eficientes, alentou nosso viver. E desde então começamos respirar possibilidades melhores. Desponta assim a reflexão necessária, capaz de iluminar perguntas que precisam de respostas: por que tanto se negou a eficiência vacinal? Qual a razão para a coleção de sinais trocados entre medicamentos comprovados e outros fartamente indicados ineficientes (e até danosos)? Se tínhamos o melhor sistema de vacinação do planeta, o SUS, por que não nos valemos dele, para garantir que poderíamos ser o primeiro país do mundo a produzir e imunizar a população? É sim possível que estejamos agora entre os 5 países do mundo que mais vacinam, mas isso justifica a perda de cerca de 100 mil mortes causadas pela demora em se assumir a responsabilidade de vacinação?
Mas sabem o que mais me preocupa? Fico imaginando os efeitos recalcados em nossa memória social. Temo, muito, muito mesmo, que a cobrança velha em forma de agravamento da polarização e que ela nos leve para o caos. O luto que mal digerimos há de nos desafiar por muito tempo. Não se passa impunimente pela experiência traumática da perda de tanta gente e tanta incúria política. Temos que passar por um doloroso processo de reflexão antes das próximas eleições e que juízos críticos nos ajudem a redimir de escolhas erradas.