DOCES PORTUGUESES, CONVENTOS E ALGUMAS SAFADEZAS.
José Carlos Sebe Bom Meihy
As delícias dos doces são conhecidas e decantadas em prosas e versos em todos os quadrantes da Terra. O que é pouco revelado são as histórias que, detalhadas, podem atiçar outros sabores. E quantos segredos guardam esses casos! Muito além do pitoresco, há razões históricas que justificam a produção dessas guloseimas que frequentam nossos hábitos alimentares, principalmente depois da chegada dos europeus à América. A busca de rotas das chamadas “grandes navegações”, o encalço do tal “caminho marítimo para as Índias” no século XIV e XV, se deu primordialmente pelo interesse comercial das especiarias ou condimentos alimentares. A colonização em geral esteve intimamente ligada à produção de cana de açúcar, então fator essencial para a sobrevivência europeia aterrorizada com ameaças de fome desde o fim da epidemia da “peste negra”, ocorrida na segunda metade do século XIV. A propósito, lembremos que a condenação do açúcar como substância nociva é algo bem recente.
Devido a motivos de exploração econômica, nos ligamos às questões da dietética europeia. E não foi só pelo açúcar, pois outros produtos determinaram mudanças radicais no padrão alimentar geral. Foi pela América que o mundo conheceu: batata, tomate, amendoim, baunilha, milho, mandioca, feijão e o tabaco, ingredientes que passaram a compor demandas sem as quais seria impossível imaginar a moderna cozinha mundial. Nesse processo, o Brasil ganhou lugar de potência agrícola e isso atravessou séculos. Das fazendas de cana à doçaria portuguesa foi um pulo, salto que aliás colocou Portugal com distinção entres as melhores do mundo. Há autores, como Almeida Garret, que garantem a primazia dos lusitanos, e aí a história se complica pela reivindicação de franceses, italianos, árabes e até chineses.
A conhecida “doçaria conventual portuguesa” guarda segredos capazes de arrepiar cabelos de pudicos e assanhar pornógrafos. Antes, convém lembrar que, desde o século XVII, a vida monástica em Portugal, principalmente para as mulheres, não se explicava exclusivamente pelas santas vocações. Não. Havia pretextos outros capazes de justificar a opção pelos conventos: donzelas rebeldes, filhas rejeitadas, desobedientes, sem recursos, ou que davam algum “passo em falso”. E isso tornou-se prática plenamente aceita, principalmente no século XVIII. É verdade que não era exclusividade portuguesa, mas ocorreu de maneira exemplar em terras lusas, onde o catolicismo em muito perdeu o rigor espiritual e ganhou feições mundanas, até depravadas. Por certo, o moralismo crítico literário tratou de sanear essas “impurezas”, que ficaram legadas a pesquisadores ou escritores consagrados como é o caso de obras como “A religiosa” de Diderot, ou as bizarras aventuras do Marques de Sade, ambas na França. Mas foi em Portugal que a vivência dessas práticas devassas ganhou destaques estarrecedores e tornou-se “socialmente normal”.
É verdade que há leituras românticas, amorosas e dramáticas, enternecedoras de amores enclausurados - e talvez o mais eloquente exemplo desse tipo de literatura seja a obra “Cartas portuguesas”, pelas quais a irmã Mariana do Alcoforado declarou seu amor proibido a um militar francês. Afora isso, de tal maneira a promiscuidade virou regra na sociedade lusa que se vulgarizou o uso do vocábulo “freirático”, particularmente qualificador de quantos sustentavam as relações entre pares amorosos com religiosas. Sem dúvida, o mais vívido exemplo de freirático foi dado por Dom João V, rei de Portugal que teve caso conhecido com uma noviça de nome Paula Teresa da Silva e Almeida, que antes fora amante do conde de Vimioso no conhecido Mosteiro de São Dinis, próximo a Lisboa. Com o rei, irmã Paula teve um filho distinguido, Dom José, que chegou ao cargo de Inquisidor-mor, mais alto posto da mais controladora instituição religiosa de Portugal. Particularizar esses casos tão pouco divulgados foi motivo para livros como fez Júlio Dantas no texto “O freirático: amor em Portugal no século XVIII”. Mas nem só de amores escusos viviam os conventos.
Por aquele tempo, a produção de galinhas também era atividade monástica, e isso se justificava nem só pela carne. Em decorrência do “galinhal”, o aproveitamento do ovo se estendeu, pois aquele tempo a clara era usada na remoção de partículas verdes ou dos taninos aplicados à fabricação dos vinhos. Pois bem, restava então as gemas, e assim se dava um natural destino culinário que resultou na maravilhosa proliferação de doces como: baba de moça, dedo de moça, queijadinhas do céu, toucinhos do céu, pasteis de Santa Clara e de Belém, e muitos mais, mas o que merece destaque, contudo são aqueles que não escondem discrição e comprometem o viés amoroso de freiras, vejamos: sopapo do convento, garganta de freira, travesseiro de freira, suspiros de freira, barriga de freira, dedos de freira. É lógico que essa doceria se apoiava na erotização promovida pelo consumo de açúcar. O escrito Afrânio Peixoto, sobre isso, disse que as receitas de então denunciavam segundas intenções: beijinhos, desmamados, levanta-velho, língua-de-moça, casadinhos, mimos-de-amor. Pois é, o que não se diz, infelizmente, como é que esses doces se integraram na tradição posta em prática hoje e, mesmo apreciados, perderam suas razões históricas. Doces portugueses, vida monásticas e sacanagens, esses elementos trançados sugerem pecaminoso prazer que hoje podemos usufruir como oração. Subamos aos céus. Esqueçamos as balanças, tudo embalado pela subversão das ordens.
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