FUNDAÇÃO PALMARES: O CENÁRIO DE UM DRAMA FAMILIAR.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Para Silvio Tendler
Dia desses fui questionado sobre o tanto que gosto de biografias, autobiografias e de histórias de vida. Sem muito pestanejar, dei uma dessas respostas protocolares, algo do tipo “adoro saber da vida dos outros”. Passados minutos, na intimidade da cativada solitude, retomei a questão e fiquei me questionando. Foi complicado. Vislumbrei uma nesga de luz na crescente preferência geral ao que Gusdorf chama de “escritos do eu”. Alívio provisório, vago, incompleto... “Mas que tipo de biografia”, inquiria o inquieto diabinho que faz morada em minha cabeça. Mais tempo e por fim uma decisão: dramas pessoais, curto dramas. “Poderia dar exemplo” explorava o insistente demo. “Sim”, retruquei. E logo me veio à cabeça o caso de Oswaldo Camargo, autor negro, pai de dois filhos, que têm posições políticas excludentes no limite do suportável. Que triângulo mais sinistro: pai intelectual respeitado, baluarte da luta pelo reconhecimento negro, tendo um filho assumido cultor do que depurado a esquerda oferece, e outro representando o que de mais atrasado e funesto a extrema direita impõe. Fermentando tudo um denominador comum: a questão racial. E que discórdia! No centro das polêmicas o movimento negro e sua mais distinta entidade representativa: a Fundação Cultural Palmares (FCP).
O entendimento do imbróglio familiar obriga a lembrança que seu Oswaldo, hoje aos 84 anos, assina importante obra apontando para potencialidades da estética negra brasileira. Gosto em particular de “Um homem tenta ser anjo” e dos “Quinze Poemas Negros”, trabalhos que se compõem com outro livro sagrado para o entendimento dessas questões “O negro escrito”. Diria que a marca maior da obra de Oswaldo Camargo é a redefinição da moderna poética afro-brasileira, algo fino, artístico, filosófico, instruído, ainda que não devidamente considerado pela crítica como demonstra Eduardo Assis Duarte. Sem medo de errar, garanto que o velho Camargo ocupa lugar de honra entre manifestações do melhor da nossa literatura contemporânea.
A consolar o velho Camargo, seu filho Wadico, produtor musical, pronunciou-se a respeito da lamentável indicação do irmão, nomeado pelo capitão-presidente da república para presidir a (FCP). Ativista, Wadico não demorou a se posicionar dizendo “Se fosse para o bem da nossa raça, eu seria o primeiro a apoiar, mas para o mal do povo negro, sem chance. Para mim, raça é Pátria, é Alma. Sou negão!”, e, emendou “Tenho vergonha de ser irmão desse capitão do mato”. Razões não faltam para tais declarações, pois o prestigiado mano não tem perdido oportunidade de taxar o movimento negro de “escória maldita” formada por “vagabundos”, “comunistas”. Com obtusos ataques ao patrono da instituição, o chefe que deveria zelar pela memória da instituição destinada ao trato do legado negro foi categórico “não tenho que admirar Zumbi dos Palmares, que pra mim era um filho da puta que escravizava pretos. Não tenho que apoiar o Dia da Consciência Negra. Aqui não vai ter, zero – aqui vai ser zero pra Consciência Negra”. Ao transpor a escravidão colonizadora para o levante de Palmares, Sergio exibe-se desconhecedor da cultura Banto, ignorando as regras de recriação de relações previstas na “República dos Palmares”. Lamentável.
Do verbo à ação imediata, desde o primeiro dia que assumiu a FCP, um conjunto fantástico de atos tratam de demolir o legado negro institucionalizado a cuidadosas e duríssimas penas. É surpreendente a progressão de ataques, mas em particular chama a atenção o desmanche do panteão de heróis elencados: Luiz Gama, André Rebouças, Carolina Maria de Jesus, Joel Rufino dos Santos. E não faltam termos arrasadores como se vê no caso de Marighella chamado de “imprestável”. Além da proscrição de nomes do passado, a lista de figuras vivas é tão assombradora que não cabe na moldura da indignação: Gilberto Gil, Elza Soares, Martinho da Vila, Lázaro Ramos, Conceição Evaristo, entre muitos outros. O argumento “por estarem vivos” é risível e até sugere que “negro homenageado tem que ser negro morto”. E os ataques se multiplicam atingindo personalidades que, segundo o presidente da instituição, “promovem pedofilia, sexo grupal, pornografia juvenil, sodomia e necrofilia”. Seria difícil hierarquizar o que de pior tem ocorrido na Fundação.
Dizendo-se “negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”, Sergio Camargo sem reconhecer efeitos corrosivos de séculos de escravidão ou a perenidade da pobreza, que agora explode em notícias incontidas, imaginando a lógica de uma igualdade que nunca existiu, faz ataques às cotas raciais, às ações afirmativas e à luta para a promoção de políticas ligadas à igualdade de oportunidades. E fundamenta tudo garantindo que os descendentes de escravos estão melhor no Brasil do que estariam na África. Tudo é claro para garantir que somos um povo sem preconceitos e racialmente bem resolvidos “ao contrário dos Estados Unidos”.
Danos à parte, o palco desta discussão merece destaque em dois níveis. O primeiro plano distintivo mostra o aparelhamento ideológico de uma política também negacionista em termos de história. A par disso, porém, é de se destacar o drama familiar que, infelizmente, emblema a divisão de uma família dividida e que faz um pai provar o fel destilado de um filho que desonra o legado paterno. Bendito seja Oswaldo Camargo, abençoado seja Wadico. Recomenda-se ao Sergio que leia o texto de seu pai “A mão afro-brasileira em nossa literatura” e que se redima a tempo de se livrar de maldições que virão. Ah, se virão!...
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