quarta-feira, 28 de julho de 2021

CONTANDO A VIDA 350

 CRINGE: A VERGONHA ALHEIA.


José Carlos Sebe Bom Meihy

Confesso que de início não dei muita bola (“muita bola”, que coisa antiga, né?). A insistência do termo cringe na mídia, contudo, me fez mudar de ideia e dedicar algum tempo para entender melhor do que se trata, pois logrou largo destaque nos noticiários, compôs preocupações sobre o jeito atual de comunicação etária, preencheu espaços das redes sociais. Tudo a partir de protagonistas ainda jovens, gente que nasceu sob a égide da internet e, por isso, se julga no direito de demarcar território crítico. Delimitar espaços, no caso, significa desqualificar os imediatamente mais velhos.

Há uma luta surda por traz do que parece brincadeira ou modismo. É aí que significados inéditos atuam como recursos depreciativos do “outro”, e então um estoque de referências serve para ridicularizar os “mais velhinhos” que são evidenciados como “novos dinossauros”. É assim que, de jeito às vezes pouco sutil, o segmento imediatamente mais datado vai sendo excluído. O tema, muito além do pitoresco, é complexo e implica exame de memória afetiva, pois a desvalorização dos “velhíssimos” provoca nostalgia e assim faz recuperar a simpatia dos rejeitados pelos agora também ultrapassados. Sim, há ondas de considerações nessa guerra plena de fluxos e refluxos. É, aliás, nesse jogo que nós vovozinhos voltamos a ser “tolerados” e logramos ter nosso estilo de vida promovido a vintage. E vintage pode.

Volta ser permitido falar de coisas “do tempo da vovó”, do “arco da velha” e podemos, novamente, usar palavras e expressões como “xuxu beleza”, “barra limpa”, “botar pra quebrar”, “estourar a boca do balão”. “Chato de galocha” era tão comum como “deu bode”, “batata”, “tamanho família”, “bocomoco” e “boa praça”. “Bola pra frente” começou ser usado depois da volta do nosso escrete (“escrete”, aiaiai) em modesto quarto lugar, em 1974, na Alemanha. Ah, tinha a lista dos diminutivos tipo “joinha”, “fichinha”, “bacaninha”. Não era um “barato”? Não era “supimpa”? Essas referências, diga-se, perpetuam sentido para nós, pessoas nascidas durante ou logo depois da Segunda Guerra Mundial. Sim, houve um intenso aumento populacional desde o fim do conflito terminado em 1945, época em que os nascidos naquele contexto foram reconhecidos como baby boomers. Talvez, a marca mais nítida desse bando sejam os contados diretos, o cara a cara, com interferências mínimas de máquinas. Daí o valor da fala oralizada em expressões contagiantes. Daí também um estilo de vida que nos marca pelas dificuldades no manejo da multidão de máquinas, principalmente eletrônicas.

Com certa arrogância nós, baby bomers, testemunhamos a contracultura e nos orgulhamos de, mais ou menos, levantar as bandeiras revolucionárias de 1968, dos tais “anos rebeldes”. O grupo seguinte, conhecido como “geração X” foi composto por pessoas nascidas na década de 1960 indo até os anos 70, crescendo na era do florescimento dos ambientes digitais. Esses, filhos dos boomers, cuidaram de valorizar instrumentos facilitadores da velocidade capaz de substituir o olho no olho. Seguindo, o próximo grupo etário ficou conhecido como “geração Y” ou Millenials, tipos nascidos dos anos de 1981 até 1996. Pois bem, é exatamente esse grupo que passa a ser alvo da atual “geração Z” que se arvora criticando a anterior. Produtos de um mundo digital, novos recursos são usados a fim de perfilar uma caricatura nos moldes do mesmo passadismo que nos acusaram. Nascidos e criados já sob os efeitos da internet, os atualíssimos “Zs” elaboraram um código crítico que arrola usos de roupas, modos de falar, hábitos alimentares. Tudo sob o rótulo “vergonha alheia”. “Pagar mico” tornou-se penalidade para quantos resistem os supostos avanços dos “Ys”. No lugar, cataloga-se os mandamentos do que é “ser moderninho”.

Sob a aparência de liberdade, os códigos propostos são de ares tão autoritários quando surpreendentes, vejamos: tomar café da manhã com qualquer requinte mínimo é censurável. Não se pode mais dizer que vai ao banco e a expressão “pagar boleto” provoca risos soltos. Fico pensando nos porquês justificadores do não uso do tão útil “google”. Aliás, as menções a coisas ligadas ao computador são essenciais e desanimam tantos que a tão duras penas aprenderam a usar os emojis – aliás, as carinhas, coraçõezinhos, flores, estão entre os mais condenáveis pecados dos “Zs”. Igualmente proscrito os “kkkkkk”, “rsrsrs”, “fui”. Escrever ou postar fotos nos “stories” é coisa de antigamente. Sinto-me atingido quando aprendo que não posso usar caixa alta nos textos de WhatsApp e que a abreviatura “zap” equivale a cancelamento. Incluir conversa sobre séries na tv é pena de morte.

A lista avança quando remete à moda, pois mulher usar batom de cor forte ou esmalte berrantes é pecado mortal – unhas amarelas ou azuis, jamais – e até os práticos jeans têm restrições pois não podem ser justos demais e nem de cores muito claras ou escuras. Se quiser ser up to date não reparta o cabelo no meio, e se usar bigode, não deixe as pontas viradas para cima. E assim vai...

Como legítimo representante boomer devo agradecer a reconsideração pelos valores de meu tempo de juventude, e dizer que assisto de camarote os efeitos dos conflitos de gerações, agora vendo os “Zs” criticando os “Ys”. Peço aos deuses, deusas, orixás e encantados que tenha tempo para observar o que acontecerá com a geração “C” (C de covid). Haja tempo. Aliás, tchauzinho, já que minha turma ganha o direito de “pagar mico”.

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