O Blog tem a satisfação de apresentar um conto da jovem escritora Mich Graf, que une duas coisas que este editor ama: terror e gatos. Além disso, a protagonista é uma menina com albinismo.
Mich Graf nasceu em São Paulo, capital, em 1995. Escreve desde os quinze anos de idade, tendo começado com alguns contos de terror rascunhados durante o ensino fundamental - nos intervalos das aulas e nas idas constantes à biblioteca, quando fugia dos infindáveis números das matérias de Exatas para encontrar sua mais intensa paixão: livros.
Maçãs Rubras foi seu primeiro conto publicado, na antologia Eles Existem, pela Dark Books, seguido por Shivah na antologia Enquanto Você Dorme, publicada pela Editora Ruppell.
Seu primeiro livro solo foi O Roseiral, disponível em E-book na Amazon Kindle e em formato físico na Loja Uiclap.
A Casa dos Gatos
Mich Graf
Apesar de muito conhecida naquele bairro, a Casa dos Gatos era evitada a todo custo. O casarão da década de trinta fora habitado poucas vezes, tornando-se efetivamente abandonado vinte anos após sua construção. Alguns diziam que era o terreno – amaldiçoado, causava loucura, causava visões aterradoras dentro da casa, causava horror à simples visão do lugar –, outros diziam ser culpa de moradores membros de alguma seita obscura, mas nada se provava concreto. A Casa dos Gatos permanecia silenciosa, cercada de mato alto que cobria algumas estátuas antiquadas, centralizada no terreno perfeitamente quadrado, encarando a rua simples pelas janelas cerradas e quebradiças.
Laurel mudara-se para a rua naquela semana. Ouviu falar da Casa dos Gatos ainda eu seu primeiro dia de aula no ensino médio, pescando a conversa enquanto os alunos esperavam pelo primeiro professor daquele dia. Alguns alunos, para o seu desespero, fingiam falar só entre eles – conversando alto de proposito para que Laurel escutasse – sobre desafiá-la a entrar na Casa dos Gatos e permanecer uma noite inteira lá. Laurel odiava os “ritos de passagem” que veteranos obrigavam novatos a realizar, e pensava seriamente em terminar o primeiro ano do ensino médio só no próximo ano, a fim de fugir daquele rito idiota.
A escola nova a deixava tensa, quase todos estudavam ali desde o jardim de infância, conheciam-se desde sempre, e Laurel sentia-se uma estranha no ninho. Todos pareciam um perigo em potencial e nem mesmo os professores a deixavam a vontade, evitando olhar demais para a garota albina de corpo cheio. Laurel se escondia na nuvem de cabelos crespos quase sem cor, mantendo a cabeça baixa e os ouvidos atentos, tentando captar mais do plano de levá-la para a tal casa.
— Não acha pesado deixar a novata na casa a noite inteira? — Indagou uma voz feminina aguda.
— E por que, Malu? — A voz da vez era masculina, repleta de cinismo.
— Porque nunca fizemos isso com ninguém. Por que com ela?
— Porque ela é nova aqui, ora essa. Não é óbvio?
— Ah, qual é, Malu. É só uma zoeira com a garota-palmito.
— Tá bom, tá bom. — Malu cedeu.
Garota-palmito fora novo para Laurel. Ela sentia o vazio crescer dentro de si, tomando tudo dentro de sua caixa torácica. A sensação de ouvir planejarem humilhá-la, de ouvir apelidarem-na de modo ridículo era como uma crise de ansiedade chegando, conferia à Laurel o sentimento de urgência, de medo, de raiva, de choro. Laurel rabiscava a margem da folha em branco de seu caderno novo, desenhando a esmo, tentando não ouvir os alunos chegando perto de si, tentando bloquear a sensação de presença quando pessoas estavam por perto. Ela queria que o chão se abrisse a engolisse, livrando-a da Casa dos Gatos.
— Oi, Laura, né? — Disse a voz de Malu.
Laurel não levantou a cabeça, com receio de Malu, desesperada para que o professor adentrasse a sala antes de ela ter que responder.
— Laurel, na verdade. — Murmurou Laurel.
— Ah, entendi. Então, meus amigos e eu vamos num lugar bem legal, de noite, uma casa aqui perto que tem uns gatos...
— É que não posso sair sem avisar meus pais.
— Manda uma mensagem pra eles.
— Não tenho celular.
Laurel esperava que ninguém a tivesse visto com seu celular no início da aula. Ou talvez quisesse que tivessem visto, assim entenderiam que ela não queria participar do que Malu estava prestes a propor.
Ouvindo suas preces, o professor da primeira aula do dia entrou na sala pedindo imediatamente que todos se sentassem. Laurel suspirou aliviada.
Esperava de coração que os planos dos alunos veteranos morressem antes que pudessem concretizá-lo.
...
Decidida a antecipar a situação, Laurel foi até a tal Casa dos Gatos antes que anoitecesse. A casa de três andares possuía uma arquitetura antiquadíssima, mas bela, era um pouco estreita, não muito, os jardins teriam sido incrivelmente bonitos quando cuidados, a julgar pelas estátuas e pela fonte em um dos lados da casa, rachada, cheia até a metade com água da chuva. Os portões duplos e as grades que tomavam o lugar de um muro não tinham mais tinta, alaranjaram-se pelos anos do tempo açoitando-as, enferrujando o ferro. Todas as janelas, fechadas, tinham lascas de madeira faltando, a varanda era forrada por gravetos, muito de algo branco e pequeno, como gravetinhos brancos, e penas. Penas por toda parte. O sol esquentava Laurel a ponto de sufocá-la debaixo do chapéu de praia preto, mas não usá-lo estava fora de cogitação; ela sofreria demais se não se escondesse dos raios cruéis. Óculos de sol redondos que tomavam toda a área dos olhos escondiam as írises vermelhas – Laurel sempre quis que seus olhos fossem azuis, como quase todos os outros albinos –, franzindo-os ainda assim, incomodada. A bolsa pesava, cheia com saquinhos de ração de gato, puxando seu ombro direito para baixo. Laurel puxou as mangas compridas da blusa preta até as mãos e tocou o ferro dos portões, protegendo as palmas com o tecido das mangas, desejando não se sujar.
Um dos lados do portão cedeu com facilidade, para seu contentamento; Laurel não tinha muita força física. Laurel não queria nem um pouco passar por todo aquele mato até a casa, por mais que vestisse mangas longas e calças, tinha medo de insetos entrando em sua roupa ou em seu cabelo, embrenhando-se nos fios. Vencendo o desgosto, Laurel passou pelo portão e caminhou empurrando o mato alto, chegando até a varanda repleta de penas e, ao que parecia, ossinhos velhos. De longe ela não pôde ver o que eram, mas tinha total certeza ao ver de perto. Tendo o nome de Casa dos Gatos, era lógico que havia gatos por ali, o que tornava as penas e os ossos algo comum para Laurel; gatinhos de rua não tinham de onde tirar alimentos que não fossem da própria natureza.
A casa não tinha porta de entrada, tendo caído havia muito tempo, jazendo no chão do hall estreito. Laurel pisou sobre ela com cuidado, piscando os olhos para enxergar o interior escuro do casarão enquanto ligava a lanterna de seu celular. A casa deveria ter sido magnífica em seus dias habitados, mas toda a beleza estava coberta por poeira, cocô de gato e mais penas. Havia ali penas de todos os tipos: enormes, minúsculas, coloridas, sem cor, velhas e novas. Laurel conseguiria montar uma revoada inteira de passarinhos se juntasse todas as penas daquela casa.
Um corredor levava para os fundos da casa e uma escadaria estreita levava para o andar superior, para onde Laurel decidiu ir, subindo devagar os degraus, testando cada um deles antes de pisar de fato. Seus passos estalavam ao pisar em mais ossinhos e sujeiras de toda espécie, mas ela não parecia se importar muito; estava curiosa em achar os gatos que o próprio nome da casa dizia ter por ali.
O segundo andar era mais escuro que o primeiro, com quase luz nenhuma entrando pelas frestas das janelas de madeira. Móveis rasgados e quebrados enchiam os cômodos, brinquedos, roupas ainda penduradas nos guarda-roupas, e ainda mais penas.
Penas, penas, penas... Em todo o maldito lugar.
No último cômodo, Laurel viu sombras correndo de um lado ao outro, olhinhos brilhando no escuro e um ou outro miado. Laurel chegou mais perto, iluminando o quarto com a luz branca do celular, vendo dezenas de olhinhos reluzentes encarando-a de volta. Ela queria deitar-se em cima de todos aqueles gatinhos, apertar todos eles, beijar seus focinhos de todas as cores e tipos.
— Oi! Então vocês que moram aqui, não é? Comilões de passarinho! — Laurel sussurrou, tentando não assustá-los.
Laurel enfiou uma das mãos na bolsa e pegou alguns dos saquinhos, rasgando-os e deixando a ração no chão. Pensar que aqueles gatinhos talvez nunca provaram ração a enchia de pena, imaginando-os sem as mordomias que gatos caseiros possuíam. Os gatinhos comiam receosos, olhando-a a cada bocado de ração. Laurel sentou-se no chão, em cima de sua bolsa vazia após tirar a ração de dentro delas e deixar em seu colo, louca para que algum gatinho se aconchegasse em seu colo.
No canto mais distante do quarto, Laurel via três olhinhos brilhando na sua direção. Franzindo o cenho, ela ergueu a luz do celular e tomou um susto contido, vendo o gato de duas faces olhando na sua direção, compartilhando um dos três olhos e parecendo vê-la com todos eles. O gatinho tímido parecia querer comer, mas o medo era maior que a fome. Laurel pegou um dos saquinhos e andou de joelhos até onde o gatinho defeituoso estava, esvaziando o conteúdo na frente dele, formando um montinho de ração. O gatinho abaixou a cabeça, cheirando a ração, mantendo os olhos das extremidades na comida enquanto o olho central não deixava a garota. A boca era uma só, larga, com o dobro de dentes que uma normal teria, porém o gato dava bocadinhas tímidas na ração.
Laurel ainda sentia certo medo do gato, estranhando o fato de o olho central ser quase que independente. Ela queria acariciar o gatinho, mas aquela boca enorme poderia fazer mais estragos do que uma boquinha felina convencional.
Sons de risadas e passos pesados se fizeram ouvir por toda a casa, assustando os gatinhos, que correram para todos os cantos escondidos, deixando-a sozinha. Nem mesmo o gatinho de três olhos permaneceu com Laurel. Ela deixou o cômodo a contragosto, devagar, com medo ao ouvir a voz de Malu no andar de baixo.
— Ela deve ter fugido pra gente não trazer ela. — Disse Malu.
— Ou fingiu que não tava em casa.
— E se...
— O que?
— E se ela estiver aqui?
Laurel sentiu o corpo arrepiar-se, apavorada. As entonações das vozes dos três eram repletas de malícia, repletas de vontade de reduzir Laurel a nada.
Ela tentou voltar ao cômodo dos gatos, mas a porta fechara-se. Laurel, aproximando-se da porta gasta, tentou abri-la, sem sucesso. Passos na escada a alertaram de que ela não tinha mais tempo para se esconder em outro lugar.
— O que?! Não acredito! Malu, você estava certa, olha só a leitosa aqui em cima!
Laurel não sabia o nome do garoto que estava na outra ponta do corredor, no topo da escada, mas isso não fazia a menor diferença para ela; odiava-o mesmo assim. Os olhos puxados do garoto estreitaram-se quando ele sorriu para Laurel, mordendo o lábio inferior. Malu logo despontou na escada, arregalando os olhos para Laurel.
— Essa garota acha que é algum tipo de bruxa? Olha como ela se veste, Jong Suk. — Comentou Laurel.
— E-eu não posso pegar sol. — Laurel murmurou.
— Ah, não? Hum, nem um pouco? — Jong Suk indagou, tramando algo.
— Pega ela, vamos levá-la para um bronzeado ali nos fundos do jardim. — Malu falou, sorrindo com maldade.
Jong Suk correu para Laurel e a puxou pelos braços, machucando-a com o aperto. Laurel tentava se desvencilhar dele, gritava, mas o garoto era forte. Laurel não morreria em pegar alguns minutos de sol, entretanto sabia que não era só isso que eles queriam; sabia que a machucariam muito mais.
Ao puxar Laurel pela escada, Jong Suk tropeçou e a soltou, mas não rápido o bastante: levou-a consigo ao cair. Laurel rolou escada abaixo, tonta e dolorida, caindo próxima de Jong Suk, observando pela porta como o mundo fora da casa estava escuro, notando que ficou na casa mais tempo do que imaginou.
— Ai caralho, acho que quebrei algum osso. — Jong Suk resmungou, gemendo de dor.
Laurel queria chorar, a dor em seu tornozelo esquerdo era enlouquecedora e, olhando para ele, Laurel o viu torcido em um ângulo anormal.
— Jong Suk, o que você fez? — Malu espirou.
— Rolar da escada é meu passatempo preferido, faço isso todos os dias às oito da noite. Caí, sua tonta, o que parece pra você?
— Não, estou falando dela.
Laurel se sentou escorada na parede do corredor, percebendo só então o nariz sangrando, o ar mal entrando por ele. Ao levar os dedos à ele, o sentiu quebrado sob sua mão. Outros focos de dor apareciam, preocupando-a.
— Vamos embora. — Ele resmungou tentando levantar.
Sombras corriam pelos cantos da casa, miados repletos de ódio ecoavam por todos os cômodos e, de repente, não havia mais por onde sair: a porta de entrada estava fechada, não mais no chão. Laurel começava a ficar confusa com aquilo, pois tivera certeza de que a porta estava no chão quando ela e Jong Suk rolaram escada abaixo.
— Que merda é essa Malu?! — Gritou ele. — A porta nem tava ali!
Pedaços de madeira caíam de alguns pontos da casa como se alguma coisa pesada corresse no andar de cima, a poeira formava uma névoa pela casa e um rosnado gravíssimo, tenebroso, ressoou. Todos pararam, Jong Suk parou de tentar abrir a porta, Malu parou de gritar e chorar e Laurel ficou como estava, amargando as dores da queda. Ela ergueu o olhar para o topo da escada, encarando a criatura parada ali, esguia, cuja cabeça de três olhos tocava o teto. As garras afiadas seguravam firme o corrimão, o corpo ossudo estava encurvado para caber na casa e da bocarra pendia um fio de saliva translúcida. O olho central se fixara em Laurel e os outros dois mantinham-se um em Jong Suk e outro em Malu. Em um segundo, a criatura pulou por sobre o corrimão e aterrissou no andar de baixo, em cima de Malu, esmagando-a com os pés felinos gigantes. O corpo de Malu dobrou-se para trás ao ser esmagada, Malu agonizava alquebrada quando aquilo ergueu uma das mãos-patas, descendo-a de garras apontadas para o rosto apavorado do garoto, fatiando-o até que massa encefálica vazasse dos cortes. Malu soluçara borbulhando por alguns instantes antes de aquietar-se, morta.
A criatura voltou todos os três olhos para Laurel, abaixou-se até ficar na altura da garota ferida, farejando-a onde estava machucada. A criatura lambeu o tornozelo ferido até que este parou de doer, curado, e fez o mesmo com o nariz de Laurel. Aos poucos a garota fora curada por aquela coisa, que então abriu uma das patas e largou um passarinho morto no colo dela antes de encolher-se até sua primeira forma, o gatinho tímido que Laurel alimentou minutos antes. Ronronando, ele a deixou sozinha, saindo pela porta da frente – sobrenaturalmente aberta –, sumindo noite adentro.
Laurel tocou o passarinho morto em seu colo, tocada pelo presente que o gato a dera, agradecido. Rindo baixinho, chocada, Laurel deixou a Casa dos Gatos, arrastando os pés pela rua seca.