CARTA ABERTA A JEFFERSON DE.
Prezado conterrâneo,
Faz mais de duas semanas que estou dedicado a você, aos seus filmes e ao entendimento de seu papel como cineasta. Por certo, busco entender o roteiro de sua trajetória, menino preto que viveu em Taubaté de onde saiu para o cinema, e dele para a crítica crescente. Acompanhando uma rede de amigos de infância, Alfredo Abraão, sempre o menciona, com reverência e admiração extremas. Lá atrás, certa vez, quase nos conhecemos pessoalmente por iniciativa de um colega comum, mas quando soube que você estava fazendo um filme sobre Carolina Maria de Jesus, prudente, temi divergências de interpretações (acho que o mesmo se deu com você). Por aqueles dias, eu já conhecia os inéditos não revelados no livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” e antevia considerações contrárias à glamourização da personagem que você enredaria. O filme de 2003, “Carolina”, interpretado pela incrível Zezé Mota, premiado aliás, é plasticamente ótimo, mas, eu ainda não entendia bem que aquela sua proposta era o fio da meada que o distingue hoje como um admirável explicador do cinema negro brasileiro. Isto não é pouco: roteirista, produtor, diretor, pensador. E bem humorado...
Examinando mais atentamente seu roteiro pessoal, fui aprendendo a admirá-lo e isto, ao mesmo tempo, me trouxe questões que começam com uma perplexidade: como não o procurei antes? Somos da mesma cidade, tivemos o bairro da Estiva como interesse de ambos; passamos pela mesma escola/USP, fomos bolsistas da FAPESP, e temos amigos próximos, então por que não o fiz?
Seu currículo é vasto e a coleção de prêmios o distingue de maneira a comprometer minhas “velhas opiniões formadas”. Constatando isto, pensei em escrever sobre você, mas a cada passo sentia-me mais perturbado com seu talento e com meu desconhecimento. Claro, fui aos seus filmes e, confesso, o feitiço de suas soluções fílmicas me encantava mais e mais. Sem dar conta de tudo, alguns resultados cativaram, em especial os curta: “Distraída para a morte” (2001), “Carolina” (2003), Narciso Rap (2005), “Jonas só mais um” (2007). Cheguei aos seus quatro longas já como admirador, e me extasiei com a realização do “Bróder”, selecionado para o Festival de Gramado de 2011 (Prêmio do Cinema Brasileiro). “Amuleto”, de 2015, me entreteve pela tensão narrativa e pela absorção da mitologia de Floripa. “Correndo atrás” emocionou, me enchendo de ternura e até por permitir entender sua ligação com o futebol – não me escapou saber que fora centroavante do Esporte Clube Taubaté.
Apendi que também atuou em projetos para a televisão como “Vinte poucos anos”, “Tudo de Bom”, “Popstars” e “Central da periferia”, exibidos pela TV Globo. Devo dizer que desse conjunto o mais revelador foi sua produção para adolescentes, como os episódios da série “Pedro & Bianca”, ganhador do Emmy no 2º Emmy Kids Awards e do Prix Jeunesse Iberoamericano.
Acabo de ver seu recente “Doutor Gama” e estou ainda impactado. Embora quisesse assisti-lo como público, o olhar de historiador me traiu. E foi assim que me investi para medir detalhes de sua articulação narrativa. Parabéns: temas históricos pertinentes - em particular o vínculo da escravidão com o programa republicano - e nele, o protagonismo abolicionista do poeta Luiz Gama. De igual força, a abordagem do ilustre defensor de escravizados com seu mentor e futuro desafeto Furtado de Mendonça, nossa que cenas arrebatadoras. E nem o romance familiar lhe escapou. Parabéns, Jefferson o filme é uma beleza, com excelentes interpretações e cenários convincentes, um divisor de águas não apenas como cinema negro.
Ao longo de tanta produção, quis saber, meu caro Jefferson, de alguns detalhes que fogem dos filmes, e me encantei com a leitura do seu atrevido manifesto “Dogma Feijoada” texto pelo qual você parodia o sagrado “Dogma 95”, traduzindo para o cinema nacional negro as sugestões dos mestres Thomas Vinterberg e Lars Von Trier. E que ironia a sua ao apresentar as sete regras para a superação dos limites: direção, atores, temas, roteiros, custo, abordagens cotidianas e cronograma, tudo preto e possível. Tudo discutindo o Brasil. Tudo feito com muita teoria e intenção. Tudo tão tudo! Uma aula de economia e função cinematográficas. Em síntese, você é uma provocação à cultura brasileira que quer se “desoficializar”.
Optei por escrever-lhe uma carta aberta pois acho que tenho um endereço maior e que vai além de uma saudação pessoal. E, então, me pergunto por que você não faz milagre em terra própria? Sei de um esforço empreendido pela equipe de Pedro Rubim, mas só isso. Pouco, né?! Mas assim é que encontro uma resposta que faz sentido no seu desempenho não transparecido na terrinha. O programa de minha geração, de homem, branco, classe média, não deixava reconhecer o protagonismo de negros que, afinal, não pertenciam a mesma condição. Reconhecê-lo agora por sua obra me faz perceber a gravidade consequente da imagem refletida no espelho da desigualdade. E em Taubaté isto é dilatado por um entranhado conservadorismo classista.
Seu protesto no nome assumido Jefferson “de”, ao tirar o “de Resende”, referência ao senhor que escravizou seus antepassados escravizados, me permite uma sugestão: desculpe-nos, seus conterrâneos estruturalmente ingratos, e permita-nos chamá-lo Jefferson de Taubaté.
Receba meu abraço reconhecido.
José Carlos Sebe Bom Meihy, ou se preferir: professor Sebe de Taubaté.
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