quarta-feira, 6 de outubro de 2021

CONTANDO A VIDA 360

ANO PASSADO EU MORRI, MAS, ESTE ANO EU NÁ MORRO.


José Carlos Sebe Bom Meihy


De repente, me peguei inquieto com uma canção que martelava em minha cabeça. Aliás, era o refrão, que se repetia de maneira perturbadora. Como já passei por isto antes, aprendi que o melhor a fazer nessas situações é percorrer uma avenida de duas mãos. Na primeira via, convém dar uma pesquisada bem completa na música: autoria, intérpretes, ano de gravação do álbum, recepção pública, tudo com destaque à letra e à melodia. Acontece muitas vezes que a simples pesquisa esclarece, não se fazendo sequer necessário transitar na via oposta. Como isso não é tão comum, depois da ida convém retraçar o caminho da volta, e, assim, resta decompor a canção percorrendo detalhes, frases, ditos e não-ditos, sugestões complicadoras das mensagens. E nessa rota, cabe pensar qual trecho da canção acionou o mecanismo da lembrança insistente.

Dizem os especialistas que essas ocorrências atendem por um nome simpático “impulso de memória espontânea”, e as melhores explicações recomendam que se preste atenção no detalhe da mensagem emitida psicologicamente e analisar seu diálogo com problemas que não conseguimos enunciar. Sim, esses sinais mnemônicos são alertas para problemas não resolvidos e que demandam cuidados. Nada é bobagem.

Pois bem, foi assim que me vi ecoando uma passagem da canção “Sujeito de sorte”, do cearense Belchior. Deu saudade desde logo, tanta que que cheguei a ouvir aquela voz estranha, entre grossa e metálica, com acento estranho que traz a figura do bigodudo de vida melancólica. O álbum “Alucinação”, gravado em 1973, sucesso relativo à época, se fez novo recentemente com o show e filme “Amarelo”, ou “Amar-elo”, do rapper Emecida. E então justificou-se a popularidade enigmática do refrão “ano passado eu morri/ mas este ano eu não morro”. É claro que o simples dizer é convite para o resto do poema “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte/ E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado/ E assim já não posso sofrer no ano passado/ Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”. Os versos são longos, trançando fortes imagens, palavras duras, perdidas na suavidade traiçoeira dos arranjos. Nossa!... A canção não me dava paz.

Depois de buscar algumas gravações, depois de “ouvir lendo” os versos singulares, encontrei uma passagem que me pegou de jeito “Sem o torro, nossa vida não vale a de um cachorro, triste/ Hoje cedo não era um hit, era um pedido de socorro/ Mano, rancor é igual tumor envenena raiz/ Onde a plateia só deseja ser feliz/ Com uma presença aérea/ Onde a última tendência é depressão com aparência de férias/ Vovó diz, odiar o diabo é mó boi, difícil é viver no inferno/ E vem a tona” arremata como o fatal “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”. Diria que esta música situa-se no hinário dos desencantos recicláveis, pois tem um final arrebatador que nos redime na esperança “Aí, maloqueiro, aí, maloqueira/ Levanta essa cabeça/ Enxuga essas lágrimas, certo?/ Respira fundo e volta pro ringue/ 'Cê vai sair dessa prisão’/ Cê vai atrás desse diploma/ Com a fúria da beleza do Sol, entendeu?/ Faz isso por nóis, faz essa por nóis/ Te vejo no pódio/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”.

Nossa, nossa, nossa! Foi tão mecânico “presentificar” a mensagem que logo entendi por que meu inconsciente insiste na repetição espontânea da letra que arde em minha cabeça de utopista incansável. Tudo isso mexe demais comigo. Demais. Os desatinos expressos pelo nervosismo político que vivemos convocam minha memória dos dias amargos da abertura da ditadura civil militar e promovem diálogo entre o absurdo e a esperança. E que, outra vez, vença o bom senso reencarnado pela ressureição da democracia. Teremos eleições com urnas eletrônicas e então será fácil gritar em coro: “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

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