AS ROSAS NÃO FALAM...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Difícil dizer como as músicas nos afetam e nos envolvem. Não se conhece quem fique alheio aos sons melodiosos que tocam de maneira profunda nossos sentimentos, às vezes nos comovendo às lágrimas, sempre nos arrebatando. E quem não se extasia com ritmos de predileção, deixa-se flanar em devaneios, balbucia letras e até se movimenta em danças imaginárias. Quem não?... Mais ainda, qual é aquele que não guarda historinha ligada a alguma melodia, a um bailinho de outrora, ou a um risco amoroso, quiçá a um beijo? Drummond dizia que “não há saudade sem trilha sonora” e Caio Fernando Abreu repetia que “saudade só é saudade boa se vier acompanhada de alguma canção”. Eu tenho muitas – saudades e músicas. Algumas delas remetem ao nosso grande mestre e compositor Cartola. Entre outras, uma delas me toca mais que tantas, “As rosas não falam”.
Lembro-me de certa feita, ao me preparar para longa temporada no exterior, ter que selecionar alguns LPs (sim, sou daqueles velhos tempos), e logo de saída, entre tantas alternativas, separei uma gravação da Beth Carvalho no álbum “Mundo melhor”, de 1976. Curiosamente, à época da composição, no alvorecer da Abertura Política, cabia um romantismo esperançoso, intimista, capaz de provocar suspiros amorosos.
Talvez seja exagero, mas creio que poucas canções empatam com tanta coerência letra e música. Parece mágica. A cada palavra de “As rosas não falam” um som correspondente dimensiona a fineza apaixonada contida nas palavras da letra. Perfeição. Logicamente, não faltaram evocações justificadas na biografia do compositor sempre devotado à boemia e à paixão. E lendas foram criadas, muitas, algumas enlevadas e repetidas com pequenas variações.
Conta-se que um dia Cartola, depois de breve separação e frente a relutância da amada, ao retornar ao lar, ofereceu à sua companheira, dona Zica, umas mudas de roseiras a serem plantadas no jardinzinho de casa. Passados algum tempo, botões se abriram, e encantada a mulher, surpresa, chamou o companheiro para ver, e, diante de tanta beleza, ela teria questionado às próprias rosas sobre florescimento tão esplendoroso. Dizem que Carola olhando para a mulher teria dito “não sei, e não pergunte as rosas, pois as rosas não falam”. Mitificam ainda afirmando que em seguida Cartola pegou o violão e de vez só dedilhou a composição com a seguinte letra:
“Bate outra vez/ Com esperanças o meu coração/ Pois já vai terminando o verão/ Enfim... Volto ao jardim/ Com a certeza que devo chorar/ Pois bem sei que não queres voltar/ Para mim/ Queixo-me às rosas/ Que bobagem as rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai/ Devias vir/ Para ver os meus olhos tristonhos/ E, quem sabe, sonhavas meus sonhos/ Por fim...”
Pois bem, já morando em Nova York, um belo dia resolvi promover um jantar para agradecer amigos que tão bem me acolheram. Entre os convivas havia um crítico de música que ao ouvir o tal álbum, num gesto repentino disse algo próximo disto “Êpa, espera aí, esta canção não é brasileira, é um velho jazz norte-americano, intitulado “La rosita”, de autoria de Bem Wester e Coleman Hawkins. A cordialidade do momento não abrigava discussões, mas agasalhei dúvidas e no outro dia, logo cedo, corri à biblioteca da Universidade que guardava uma discografia exuberante e achei a referência. Com inusitada curiosidade ouvi. E fiquei atônito. Recomendo a todos que busquem https://www.youtube.com/watch?v=zLK2lbRi828 e meditem um pouco sobre a relação entre ambas. Recentemente, lembrei-me dessa história e obtive a confirmação dada por José Ramos Tinhorão: impossível separar as duas versões.
Mas, acima de debates sobre plágio ou outra conceituação pejorativa, cabe saudar o grande Agenor de Oliveira – nome de batismo de Cartola – ressaltando que sua reputação está acima do bem e do mal. Alguém que compôs algo como “Que Infeliz Sorte”, “Divina Dama”, “Quem Me Vê Sorrindo”, “O Sol Nascerá”, “Alvorada”, “Tive Sim”, “O Mundo É um Moinho”, “Acontece”, pode muito. Pode até ter ouvido uma canção e a recriado em linguagem própria. O que não vale é reduzir um compositor tão completo a uma situação que merece ser analisada exatamente na chave da memória. Da mesma memória que marca a subjetividade da música em nossas vidas. E de nada adianta perguntar às rosas. Juro!
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