DESASSOSSEGADO COM FERNANDO PESSOA.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Como as artes ajudam! Sempre. Salvam-nos pelo
reencantamento do mundo, pela alternativa ao real, pela beleza sensibilizada. Vale
perguntar o que seria de nosso agora sem o convívio com a música,
filmes, novelas, leituras, pequenos clips que sejam. Não sou exatamente do tipo
que relativiza tudo e se vale da lenga do copo meio cheio, meio vazio. Não
mesmo. A carapuça de pessimista veste bem minha personalidade que, aliás, só não
me envenena graças às catarses permitidas por devaneios estimulados. E choro
pelo negacionismo que tudo anula, despreza, desalenta. E domestico a
grandiosidade do perigo anunciado pela política aprendendo a esperar. Mas não é
alheamento passivo. É aguardo instruído. Poetado.
Em meio a um
tecido de lamúrias contidas, um escrito de Fernando Pessoa soou-me como
pretexto. O mais amado dos poetas portugueses contemporâneos, quase sempre
evocado pelo seu lado mais tangível, acabou por provocar em mim um alívio
filosófico motivador de certa alienação do bem. Dono de heterônimos (21, 72, 127?)
ele abrigou um sem-número de outros “eus” guardados pelo denominador comum contido
no “poeta fingidor”. Nas delícias de rimas enigmáticas, porém, esquecemo-nos de
uma de suas dimensões mais lustrosas, esta sim, dona de dificuldades
provocantes. Falo especificamente de um dos conjuntos mais inquietos da poética
ocidental, exatamente do “Livro do desassossego”.
Ah, o “Livro do
desassossego”!... Lembremos, são 500 entradas, não dispostas em ordem sequente
e que, fragmentadas, oferecem articulação exigente da organização
interpretativa do leitor. Foi pensando nesses cacos soltos que fiz uma ligação pessoal
e oportuna. Creio que a primeira informação que desafiou essa minha travessia, quando
ainda menino, foi causada pela prática que exercitou escrevendo cartas para si
mesmo. Outro lance que me fisgou foi a dimensão da frase de Plutarco “navegar é
preciso, viver não é preciso”. Guardo bem a sensação desconfortável sobre
incerteza do verbo “precisar”: precisar como necessidade; precisar como
exatidão. Desde então, aprendi a navegar no mar Pessoa exatamente sem
exatidões.
É claro que da
coleção de detalhes intrigantes, minha leitura desnorteada não poderia deixar o
registro da demora da colocação pública do tal “Livro do desassossego”. Morto
em 1935, apenas em 1962 alguns fragmentos foram lançados, sendo que se esperou
até 1982 por uma edição integral. E como as entradas, como se diário fossem,
são desconcertantes. Confesso que fiz uma pequena lista de ligações, mas me
detive em um quesito que se ajusta perfeitamente ao meu ânimo atual. Reuni duas
passagens que falam contra ativismos desesperados. A primeira delas leva o título
de “Maneira de bem sonhar” e aconselha:
Adia
tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã.
Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa,
amanhã ou hoje. Nunca penses no que vais fazer. Não o faças. Vive a tua vida.
Não sejas vivido por ela. Na verdade, e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o
teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando porque a tua vida real, a tua
vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros... Despreza tudo, mas de
modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A
arte do desprezo nobre está nisso.
Em outra passagem intitulada “A inacção consola de
tudo” Pessoa completa a mensagem anterior e prossegue a lição:
Não agir dá-nos tudo. Imaginar é tudo, desde que
não tenda para agir. Ninguém pode ser rei do mundo senão em sonho. E cada um de
nós, se deveras se conhece, quer ser rei do mundo. Não ser, pensando, é o
trono. Não querer, desejando, é a coroa. Temos o que abdicamos, porque o
conservamos, sonhando, intacto eternamente à luz do sol que não há, ou da lua
que não pode haver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário