DIREITO À MEMÓRIA, DONOS DA HISÓRIA.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Das mais estranhas experiências que passamos é a aprendizagem, nos bancos escolares, da grafia de nosso nome. Claro que isso é um processo respeitável, mas, não sei porque deveríamos aprender em casa, com nossos pais. O mesmo se diz sobre a História, como disciplina. Pelos livros, mediada por professores, aos poucos vamos nos instruindo daquela grande História, os feitos gravados em páginas documentadas. Tudo é muito solene e distante, às vezes, profissional e frio demais.
O correr do tempo tem proposto alternativas e nesse quesito, a eletrônica tem possibilitado cortar caminhos. As redes sociais, os blogs e a febre dos stories acaba propondo diálogos com a tal grande História. em contraste, fala-se de registros de experiências retraçadas no cotidiano, fiadas em tecidos bordados na espontaneidade corriqueira. É aí que entra a mania de memória. Repararam como hoje tudo é “memória”? pois bem, esse fenômeno merece algum cuidado, pois parece que veio para ficar.
Ao longo de décadas recentes, ficam claras as preocupações de segmentos diversos atentos ao registro de experiências pessoais e coletivas. Todo ser humano nasce inscrito em complexas redes que afetam diretamente sua percepção de mundo. Comungada com atributos biológicos, tais eventos são filtrados por experiências individuais, sem perder as marcas da sociedade envolvente. É, portanto, pela condição pessoal que as circunstâncias experimentadas por todos é assinalada. Deste modo, toda experiência pessoal é coletiva e toda experiência coletiva é mediada por reações individuais.
Uma das manifestações mais surpreendentes remete ao direito de registro e análise de fenômenos que dizem respeito a todos. Em termos de ponderações, sobre o vivido, uma linha divisória separa o que é acadêmico do que não o é. Uma das presenças marcantes da possibilidade de variação de procedimentos remete exatamente às facilidades de produção de registros que se fazem corriqueiras graças às conquistas eletrônicas. Famílias, clubes, grupos de trabalho, associações de recreação, instituições em geral, se apresentam como produtoras de documentos e como agentes analíticos dos próprios feitos. Subjacente a isto, preside uma questão pouco considerada, mas de contornos práticos, éticos e até morais: quem tem direito de fazer a história pessoal e de outros? Há privilégios ou aptidões específicas para a vontade de historiar? Afinal, quem é quem no conjunto de possibilidades de produção de documentos e exercício do exame de projetos sobre registros pessoais e coletivos?
Mais do que a profissionalização das análises sociais, o desejo de lugar histórico dá palco à alternativas que permitem convívio entre pesquisas promovidas por especialistas e amadores, em qualquer campo. Democraticamente, a possibilidade é de todos, mas há de se respeitar os códigos comunicativos de cada situação, bem como habilidades sistêmicas treinadas. A recolha de elementos registrados tanto pode ser feita por qualquer interessado como por especialistas que se preparam para tanto. Há, contudo, critérios e exigências diferentes. Além da produção documental, fala-se também em exames analíticos que, afinal, passam pela mesma triagem.
Qualquer menção que demande história é produzida e elaborada na memória. Desta certeza pode-se aferir que a consciência é inerente a vida de quem guarda sensações. Como condição existencial a memória equivale à existência. A falibilidade da vida individual, contudo, tem transcendências que encadeiam a vida social. Os indivíduos morrem, inevitavelmente, mas suas experiências materializadas em registros comunicam, no coletivo, o sentido da vida comunitária. Neste sentido, pode-se dizer que há uma imortalidade da memória, ainda que haja transitoriedade na contribuição pessoal. No vai-e-vem progressivo das experiências grupais, o progresso dos mecanismos de registros corresponde à evolução das formas de constituição dos objetos portadores de significados.
A noção da intimidade indissociável entre o que se registra e como os registros são feitos, exige que se historie alguns passos decisivos na ordem dinâmica das matérias. Como marco divisor inexorável, a escrita se porta como estojo onde se arquivam as manifestações da memória materializada. Fala-se, portanto, de duas maneiras de transmissão dos registros de memória: a oralidade e a escrita. Ainda que presidam interações constantes e aceleradas, a radicalidade dessas matrizes requer cuidados: uma coisa é transmissão oral; outra transmissão escrita. Códigos diferentes, o oral se distingue do escrito desde suas propostas de registros. A memória de transmissão oral depende de processos – pessoais e coletivos – que exigem conexões emocionais. A memória de transmissão escrita se ordena segundo certa racionalidade. Entre uma e outra, o uso dos sentidos atua como fórmula variável. O tato, por exemplo, organiza as soluções escritas de maneira a processar a memória segundo modos diversos da fala.
É incerto o futuro dos estudos sobre a memória e sobre seus efeitos na produção da História. O que se mostra sagrado e democrático, contudo, é a nossa possibilidade de aproveitar a eletrônica e pensar nos registros que queremos deixar. Viva a História dos historiadores, mas viva também aquela que decorre dos nossos registros de memória.
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