COCA COLA E CRÍTICA MUSICAL.
José Carlos Sebe Bom Meihy
para Paulo Pereira.
A história do refrigerante mais conhecido do mundo, a Coca Cola, se confunde com o trajeto da propaganda em nível global. E tudo começou em 1886, em uma farmácia na cidade de Atlanta, nos Estados Unidos. Incialmente como xarope, o produto foi sendo adaptado, ganhando gosto popular, até chegar ao pódio das empresas de maior sucesso de todos os tempos. Atualmente, em cerca de 200 países, sua presença na cultura global é irrefutável. Como símbolo reconhecido e esteticamente bem resolvido, a coca cola passou a se prestar também como identificação pop dos Estados Unidos, mas insinuando-se também como pretexto de crítica ao imperialismo ianque.
A coca cola chegou ao Brasil em 1941, compondo o alargamento americano promovido pela participação na Segunda Guerra Mundial. A estreia do produto em nossa terra deveu-se à satisfação dos soldados que saboreavam um produto típico de sua cultura. O cenário era o então chamado “corredor da vitória” que ia da cidade do Recife (porto de chegada) a Natal (principal posto de lotação dos pracinhas). Valendo-se de uma fábrica de água gaseificada preexistente na capital pernambucana, o próximo passo se deu no Rio, então capital federal.
Passada a fase da Guerra, como parte de um complexo programa de modernização composto principalmente pela divulgação da música, do cinema e da literatura estadunidenses, a coca cola integrava um pacote que trocava a velha tradição europeia pelas influências norte-americanas - isso, aliás, ocorria mundo afora como recurso de sedução cultural. Sutilmente, porém, reações despontavam, deixando transparecer críticas ao sistema capitalista que se impunha em miúdos comerciais como tênis, camisetas, chicletes, cigarros, batatas chips, incluindo a popularizada coca cola. Na contramão repontavam reações políticas que se insinuavam percorrendo um caminho de resistência pouco notada, vista sempre isoladamente.
Em termos de música popular, curiosamente pela primeira vez a marca apareceu em 1956, num xote de Luiz Gonzaga que compôs com Zé Dantas uma engraçada referência contida na gravação “Siri jogando bola” com a seguinte passagem “vi um jumento beber vinte coca cola/ Ficar cheio que nem bola/ E dar um arroto de lascar”. Pela ironia e pelo sucesso justificado na informalidade da música nordestina, houve reação expressa pela crítica classista, que levou o apresentador Flavio Cavalcante, em um dos mais importantes programas de televisão, a quebrar em cena o disco gravado pelo Gonzagão.
Demorou um pouco até que a coca cola voltasse à música. E veio forte, com a assinatura vibrante de Caetano Veloso que, no festival de 1967, fez o país vibrar com “Liberdade, liberdade”, narrando um vagante brasileiro “por entre fotos e nomes/ os olhos cheios de cores/ o peito cheio de amores vãos”. E progredindo o bardo dava conta de um brasileiro atônito, falando de sua saga desconexa “Ela pensa em casamento/ E eu nunca mais fui à escola/ Sem lenço e sem documento/ eu vou/ eu tomo uma coca cola/ Ela pensa em casamento”. A bricolagem factual embutia crítica a um certo desnorteio cultural desafiante de posicionamentos.
Nenhuma menção ao impacto da marca no Brasil pode deixar de saudar a “Geração coca cola” do grupo brasiliense “Legião Urbana”. O texto de Renato Russo, funcionou como espécie de consciência orientada contra o padrão norte-americanizado. Convém lembrar que falamos de um momento em que a abertura política já estava definida e que bandas assumiam a versão brasileira de protestos legitimados por variações do rock. Então “Paralamas do Sucesso”, “Capital Inicial” e “Titãs” faziam os jovens repetir esculachos políticos e críticas sociais. No radicalismo desta pauta, a Legião fazia o público delirar entoando, como se hino fosse, “quando nascemos fomos programados/ a receber o que vocês/ nos empurraram com os enlatados/ dos U.S.A./ de nove às seis/ desde pequenos nós comemos lixo/ comercial e industrial/ mas agora chegou nossa vez/ vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês/ somos os filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ geração coca cola”. E o estridente estribilho bradava “somos os filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ geração coca cola/ geração coca cola”.
Tanto grito revoltado possibilitou um debate envolvendo a coca cola e a nossa cultura. Em 1984, Lulu Santos compôs com parceiros “o último romântico” e o fez exatamente retomando o Caetano de “Liberdade, liberdade”, tentando avançar na meditação sobre o imperialismo. Dialogando com “Liberdade, liberdade”, agora em um balada chegada ao rock, um tanto conformado, desapontado mesmo, Lulu se expressa avaliando o processo “Faltava abandonar a velha escola/ tomar o mundo feito coca cola/ fazer da minha vida sempre/ o meu passeio público/ e ao mesmo tempo fazer dela/ o meu caminho só, único”. E concluía laconicamente se apresentando como “o último romântico”. Em síntese, a conclusão apontava a morte da crítica ao capitalismo e o triunfo inquestionado da marca como símbolo.
Mas a coca cola está aí, firme, presente, continuando sua missão metafórica sobre nós. Não convém, contudo, liquidar a esperança de desdobramentos críticos... Quem sabe, logo surgirá uma nova canção para nos lembrar que o combate continua. Tem que continuar. Quem sabe?... E se alguém discordar pode abrir uma coca cola e beber o dia de nossa virada que há de vir. Quem sabe o “último romântico” tenha aprendido algo da “geração coca cola” e entoe o “Liberdade, liberdade” que, aliás, começou num xote bem nordestino, confirmando que coca cola causa arroto.
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