quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

CONTANDO A VIDA 376

PREGUIÇA, A MÃE DOS PECADOS

José Carlos Sebe Bom Meihy


Andava meio triste, algo saudoso da vida rotineira de antes da Covid. Bateu saudade dos parentes, amigos, alunos... Dei asas a mais alguns maus pensamentos que rondavam meu inconsciente e para dissipar o climão que se anunciava, resolvi ir às compras. Demorei o mais que pude e depois, distraído na fila do supermercado, meio sem pressa para voltar, ouvi uma conversa dessas que acabam por chamar a atenção. Tratava-se de uma senhora muito bem apessoada, que dizia para uma jovem ao lado: olha, a preguiça é o maior e o melhor dos pecados, pois quando se apossa de uma pessoa, todas as outras faltas deixam de ser praticadas. Nossa, pensei!... E foi o que me bastou para rogar que a espera fosse longa.

E os argumentos prosseguiam compondo instigante investida teológica feita às avessas. Com certa maestria didática, a altiva senhora pregava que alguns pecados capitais isentavam outros e até os redimiam. O exemplo seguinte explorava a “inveja”, que, segundo a exegeta de supermercado era responsável pelo progresso, pelo impulso pessoal para a melhoria de vida. E os casos usados eram excitantes “veja bem, se alguém tem inveja do vizinho, que tem um carrão, casa na praia, viagens fabulosas, por inveja legítima, ele vai lutar para ter o mesmo, ou até mais”. Fiquei ouriçado com a clareza...

Confesso que me continha para não entrar no papo animado, pois ao se referir a outro pecado capital, a “gula”, o argumento exagerava na melhoria da culinária. E não é que os afundamentos da senhora faziam todo sentido. Com um gesto exuberante ela apontava para as prateleiras ao lado, afirmando que nada daquilo existiria se não fosse a tal da “gula”. E eu, com pescoço meio inclinado concordava, lembrando-me de reclamação recente sobre o exagero dos programas de culinária na televisão. Aliás, fiquei irritado ao entrar em um site de minha livraria preferida e me deparar com o número multiplicado de lançamentos de livros de receitas. Além disso, o próprio supermercado justificava a questão.

E a “avareza”, exclamava a experiente dona da conversa: a “avareza” é responsável pelo avanço da economia, pelo sucesso das empresas que animam o mercado. Lembrei-me da expressão “pão duro” e imediatamente recordei de uma situação recente em que ruminei raiva de um companheiro que, ao compartir conta coletiva depois de lauto jantar, fazia questão de contar centavos. E me veio à cabeça a indignação por ser exatamente ele o mais rico do grupo, dono de um próspero comércio... seria por isto?!

Para minha desgraça, a fila corria muito mais ligeira do que no comum das vezes, e logo pensei na “ira”. Sim, fiquei “irado” por não ter acesso aos demais informes passados pela abalizada defensora das nobres virtudes dos pecados capitais. Ao olhá-la já no caixa, passando os produtos comprados, resolvi dar sentido aos ensinamentos e admiti que a “ira” que sentia pela interrupção da conversa (alheia) era algo positivo, pois, na solidão desses dias pandêmicos, no isolamento a que me proponho, daria estrada a uma possível depressão e, assim resignado, até me surpreendi com a certeza que seria melhor ser colérico, ter uma explosão passageira, do que me abandonar deprimido.

Pois bem, as duas se foram e fiquei com o tema na cabeça. E foi assim que pensei no sentido da “luxúria”. E me veio imediata a relação que fiz com os livros de Philip Roth (“Complexo de Portnoy”), de Vladmir Nabokov (“Lolita”) e até dos clássicos Diderot, Sade e principalmente de Georges Bataille (“História do olho”). Aliás, só por essa seleção os pecados da carne estariam absolvidos.

A “soberba” exigiu que me posicionasse favorável ao orgulho, e até julguei que São Tomás exagerou ao dizer que é o maior dos pecados. Fundamentei meu ponto assumindo que, para ser orgulhoso, e do orgulho ir para a “soberba”, era preciso ter qualidades exaltadas, caso contrário o personagem não seria levado a sério. Bem, estava perdido nessa trama quando me dei conta de que tudo havia começado com a “preguiça” e que ela era realmente a grande responsável, e, por fim, conclui que sem ela não haveria nenhum dos outros pecados. Como dá muito trabalho e/ou exige-se engenho, os demais delitos capitais todos seriam inexistentes se a preguiça dominasse. Pensei em reagir a isso tudo, em retomar a legenda cristã, mas, sinceramente, me deu enorme preguiça.

 

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