Aos 87, Hermeto Pascoal lança ‘Pra você, Ilza’, álbum dedicado à mulher falecida em 2000
Além de voltar aos estúdios, um dos maiores músicos do mundo ganha biografia e vai ser uma das atrações do Rock in Rio
SILVIO ESSINGER
Da Agência Globo — Rio
Foi longe o menino albino nascido numa casinha do povoado de Olho d’Água, localidade próxima a Lagoa da Canoa, município no interior de Alagoas. Riscos até lá, ele enfrentou alguns – bem criança, a mãe teve que pintá-lo de preto, junto com o irmão Zé Neto, também albino, e escondê-los no mato para que o cangaceiro Lampião os não levasse, por exemplo.
Mas a arte foi mais forte que as circunstâncias, e no próximo dia 22 Hermeto Pascoal chega aos 88 anos de idade reconhecido como um dos maiores músicos vivos do mundo (ano passado, recebeu das mãos de Wynton Marsalis o título de doutor honoris causa na Juilliard School, em Nova York). Ele será homenageado com uma exposição e uma biografia e, o que é melhor, ainda em plena atividade: acaba de lançar um álbum de inéditas e segue com uma agenda de shows que o levará ao Rock in Rio.
— Tudo que eu recebo vem do universo. A música não para justamente por isso, por causa dessa liberdade que eu dou para minha própria mente — explicava por telefone um Hermeto em vias de lançar, na última terça-feira, “Pra você, Ilza”, disco feito com seu grupo em fevereiro, no Estúdio Rocinante, em Araras, na região serrana do Rio.
É mais uma coleção de composições dessa verdadeira usina humana, que de 23 de junho de 1996 a 23 de junho de 1997 criou nada menos uma música por dia e deixou tudo registrado em partituras no livro “Calendário do Som”. Desta vez, porém, os temas instrumentais são todos eles dedicados a Ilza Souza Silva, mãe de seus seis filhos e sua companheira de 1954 a 2000 (ano em que faleceu, vítima de câncer).
— Vivemos a vida toda, o tempo todo, até que Deus chamou para lá, estava na hora dela. O presente que eu poderia dar a alguém é a música — justifica-se Hermeto, que conheceu Ilza em Recife, para onde foi aos 14 anos, com Zé Neto, a fim de viver de música. — Eu tocava com o pai de criação dela, o violonista Romualdo Miranda (irmão do bandolinista e mestre do choro Luperce Miranda), e fui morar num quarto quase em frente da casa dele. Um dia eu vi aquela moça bonita, meu tipo mesmo. Noutro dia, o Romualdo convidou a gente para almoçar lá e fiquei esperando ela aparecer. Mas Ilza tinha ido para o Rio. Perguntei quem era a moça e ele só me disse: “Ela vai voltar logo.”
Ilza voltou, reparou naquele menino sanfoneiro e lhe pareceu que ele não abria os olhos.
— Cá comigo eu achei: “Tô lascado!” Mas a simpatia dela de ter perguntado porque os meus olhos não abriam foi o que fez começar o namoro. Eu falei: “se esses olhos não abrem é porque eles estão vendo as coisas mais interessantes.” Ela riu pra caramba e eu já dei a minha cantadinha devagar — recorda-se. — A gente começou a namorar e o Romualdo arrumou um quarto para nós lá, mas disse que não dava para ficar daquele jeito. A gente estava a fim um do outro, e um amigo dele, advogado de cartório, conseguiu fazer documentos que aumentaram a idade para a gente poder se casar.
E o resto é história – que está toda nas 280 páginas de “Quebra tudo! – A arte livre de Hermeto Pascoal” (Kuarup), a primeira biografia do músico, escrita pelo jornalista Vitor Nuzzi. Em 1961, Hermeto se mudou para São Paulo e, tocando piano na boate Stardust, conheceu o guitarrista Heraldo do Monte (que o chamaria para o Quarteto Novo, criado para acompanhar Geraldo Vandré, e que fez fama ao lado de Edu Lobo e Marília Medalha no “Ponteio” do festival de 1967) e o jovem Lanny Gordin (filho do dono da Stardust, com quem integrou o grupo Brazilian Octopus, e que faleceu ano passado).
Percussionista do Quarteto Novo, Airto Moreira, e sua mulher, a cantora Flora Purim, foram os responsáveis por levar Hermeto (que, além da perícia em vários instrumentos, começava a se destacar na composição) para os Estados Unidos. Lá, ele gravou discos e ficou amigo do trompetista e mago do jazz Miles Davis, que lhe surrupiou a autoria de três músicas (“Little church”, “Nem um talvez” e “Selim” – ou seja, Miles ao contrário — gravadas no álbum “Live Evil”, de 1971). Isso tudo, enquanto fazia das suas no Brasil (no Festival Internacional da Canção de 1972, Hermeto criou para a música “Serearei” um coral de porcos que não foi bem visto pela ditadura e acabou sendo censurado).
— A essa altura do campeonato, o Hermeto mais do que merecia uma biografia. Em geral, a nossa bibliografia trata muito dos cantores, a gente tem centenas de livros sobre eles, e muito poucos sobre o os instrumentistas — acusa Vitor Nuzzi. — E dentre os instrumentistas brasileiros, Hermeto é o mais original e criativo. Ele é um homem-instrumento, difícil é saber o quais os instrumentos que ele não toca, dos convencionais aos que ele próprio criou, como o copo d’água e a chaleira, para não falar nos bichos. Em termos de criatividade, o Hermeto está no mesmo patamar de um Tom Jobim.
De volta ao Brasil, Hermeto se radicou com a família no Jabour, bairro do grande Bangu (Zona Oeste da cidade do Rio), área que seu pai começou a desbravar ainda em 1958. A partir dos anos 1980, a sua casa passou a ser ponto de peregrinação de jovens músicos, em busca de orientação do mestre autodidata, que então já tinha cunhado o seu conceito de “música universal” (“o fato de não me preocupar com as chamadas raízes da MPB não se constitui, para mim, num problema, porque se eu fizer o que sinto sai normalmente brasileiro, porque eu sou brasileiro”, dizia Hermeto em 1976). Muitos futuros astros da música instrumental deram seus primeiros passos ali, no Jabour.
— A Ilza ficava tão contente que fazia almoços para os músicos. Ela brincava muito com o Itiberê (Zwarg, até hoje baixista de Hermeto, e pai de Ajurinã, baterista e saxofonista do grupo), chamava ele de Olhão, porque quando servia os pratos, ele ficava de olho, como se estivesse apressado para comer primeiro. A Ilza tinha uma intimidade de mãe com eles. Quando a gente viajava, ela sentia falta — suspira Hermeto, acrescentando que alguns de seus músicos, como o saxofonista Carlos Malta e o baterista Marcio Bahia, chegaram a se mudar para o Jabour, para não se atrasar para os ensaios diários.
Para homenagear Ilza, Hermeto escolheu 13 entre um total de 198 partituras registradas em um caderno dedicado à mulher, e escrito entre 1999 e 2000. Na hora de gravar, ele levou apenas com a partitura bruta indicando melodia e harmonia. Sentado numa poltrona, ele ia dizendo cada nota e ritmo que os músicos devessem executar e, ainda por cima, criou novas partes para as músicas, tudo na hora. Coube aos velhos escudeiros Itiberê, Ajurinã, André Marques (piano), Jota P (saxofone) e Fábio Pascoal (o único filho de Hermeto que seguiu na música, como percussionista) ir atrás dele.
O fato de o estúdio da Rocinante ficar no meio de um pedaço de Mata Atlântica preservada ajudou muito a gravação de “Pra você, Ilza”.
— A impressão foi a de que a gente nem estava num estúdio, foi como se estivesse em casa, fazendo o que você quer fazer. Bem solto, bem livre — observa o Bruxo, que ainda fez questão de incorporar ao disco os ruídos da natureza. — Pedi para gravar os sons da mata, dos bichos, dos passarinhos... tudo o que vinha era registrado!
Diretor artístico da Rocinante, Sylvio Fraga admite que “lançar um disco de inéditas de Hermeto Pascoal é uma honra sem tamanho, ainda mais um disco com significado tão importante e íntimo para ele”.
— A gente pôde presenciar esse gênio imenso, sentadinho numa cadeira, cantando tudo que cada um ia tocar. Depois de 87 anos, ele cria como se fosse um menino descobrindo música pela primeira vez — admira-se Sylvio. — E teve um momento genial em que o Hermeto disse ao músico: “só para sentir que realmente vai funcionar, sai da sala e entra tocando isso, como se fosse o início de um show!” É incrível como ele se coloca sensorialmente dentro daquilo, como ele entra integralmente na criação.
Uma unanimidade na MPB, citado em canções de Caetano Veloso (“Podres poderes”, “O estrangeiro”) a Chico Buarque (“Paratodos”), Hermeto Pascoal ganha ainda, no dia 28, uma exposição no Sesc Bom Retiro (São Paulo) que abarca um outro lado de sua produção, a visual. Ars Sonora (em cartaz até dia 3 de novembro) reúne desenhos, pinturas, vídeos, objetos e “propostas sonoras de instrumentos musicais”.
E a vida nos palcos segue, com um Hermeto na maior parte do tempo sentado, por causa da idade, mas ainda fumegante em suas intervenções instrumentais com o grupo (“os ossos não param de envelhecer, o remédio que eu tomo é música, o que dá para fazer eu faço”, informa). Nos próximos dias 21, 22 (seu aniversário) e 23, ele toca no Sesc Vila Mariana (SP). Em 11 de agosto, estará na primeira edição brasileira do festival uruguaio Medio Y Medio, no Circo Voador (RJ). E em 14 de setembro, abrilhanta o Global Village do Rock in Rio, ao lado do sanfoneiro Mestrinho e do pianista Amaro Freitas.
— A música é que nem o vento, que nem o céu, que nem as estrelas, que nem a água, que nem o chão e as montanhas. Deus deu tudo isso para a gente se inspirar, que é para Ele não ficar tendo trabalho de falar com todo mundo — arremata o filósofo Hermeto.
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