quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

ALBINISMO NO RIO GRANDE DO SUL

Falta de políticas públicas e emergência climática expõem cada vez mais população albina no Rio Grande do Sul

Estado não possui dados sobre o número de albinos residentes no território ou um serviço especializado para eles
19 dez, 2024
Bianca Brandalise, moradora de Porto Alegre, é uma das 21 mil pessoas albinas no país / Fotos: Bárbara Bertoncini


No dia 21 de novembro de 2024, o Ministério da Saúde instituiu um Grupo de Trabalho Nacional para organizar a linha de cuidado para as pessoas com albinismo no Brasil. A iniciativa busca assegurar o atendimento integral às pessoas com albinismo, abrangendo ações de prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e cuidados paliativos, em conformidade com as diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral da Pessoa com Albinismo. O projeto final será encaminhado às instâncias deliberativas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Apesar do avanço nacional, a falta de políticas públicas para pessoas albinas e a desinformação em relação a essa condição ainda são uma realidade no Rio Grande do Sul. De acordo com a Secretaria da Saúde, o estado não possui dados sobre o número de pessoas albinas residentes no território, nem um serviço especializado específico para o tratamento delas. Em caso de necessidade, os pacientes são encaminhados para oftalmologistas e dermatologistas, visto que a condição genética os torna mais suscetíveis a circunstâncias de saúde específicas, como problemas de visão, sensibilidade à luz solar e maior predisposição ao câncer de pele.

De acordo com a médica geneticista e professora da UFRGS Lavinia Schüler Faccini, o albinismo é uma condição genética hereditária causada pela ausência total ou parcial de melanina, pigmento responsável pela coloração da pele, olhos, cabelos e pelos. “Há diferentes formas de albinismo, o mais tradicional é o que a gente chama de Tipo 1, em que a pessoa tem tanto o cabelo quanto a pele clara. Isso é importante porque, quando a pessoa vai para o sol, ela se queima, ela não se bronzeia”, explica a especialista. Além de facilitar o surgimento de doenças graves de pele, a condição também provoca problemas de visão. “A íris fica sem cor. Não são olhos azuis, são olhos que não têm melanina. Então, os raios ultravioleta vão direto na retina”, ressalta.
A falta de melanina nos olhos faz com que a pessoa albina apresente pouca coloração tanto na retina quanto na íris / Foto: Bárbara Bertoncini

A engenheira Bianca Brandalise, de 28 anos, é uma das 21 mil pessoas albinas no país. O dado faz parte da última estimativa do Ministério da Saúde, realizada em 2022. Natural de Caxias do Sul e moradora de Porto Alegre há mais de dez anos, ela encontrou dificuldades em relação às informações e ao seu diagnóstico específico durante toda a vida. Quando nasceu, seus pais perceberam que a coloração clara de seus cabelos e pele era diferente, mas não tinham conhecimento sobre o albinismo e acreditavam que a falta de melanina estivesse relacionada ao fato de ela ser recém-nascida. “O que despertou essa dúvida na cabeça deles foi a questão, principalmente, da fotofobia. Eles me levavam para o sol e eu fechava os olhos, de uma forma bem incomodada”, relata Bianca. Foi por causa dessa sensibilidade excessiva à luz que os pais da engenheira decidiram procurar um pediatra, o que resultou em um primeiro diagnóstico de albinismo após algumas análises. “Foi um diagnóstico visual, não foi um diagnóstico com exame genético, na época”, acrescenta.

Foi somente no início de 2024, após a passagem pelo Programa Pró Albino, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que Bianca conseguiu ter um diagnóstico em relação ao seu tipo de albinismo e aos problemas visuais causados pela falta de melanina em seus olhos. Apesar de ter se consultado com diferentes oftalmologistas ao longo da vida, ela conta que nenhum dos profissionais possuía conhecimentos específicos sobre as alterações oftalmológicas causadas por essa condição genética. “Antes eu sabia que enxergava mal, sabia que tinha miopia. Conseguia encontrar uma lente ou óculos que desse uma amenizada, mas não resolvia o meu problema visual. Mesmo com lente ou óculos, eu continuo sendo uma pessoa com baixa visão. O que é que tem por trás?”, questiona Bianca.

Para a especialista Lavinia, a falta de atendimento especializado e de um mapeamento da população albina no Rio Grande do Sul é preocupante. “A gente não sabe exatamente quantos são, por não haver um registro. Muitos albinos não chegam nem a realizar consultas com o geneticista”, explica. Essa realidade dificulta a realização de políticas públicas eficazes que atendam a essa população, além de agravar complicações de saúde que poderiam ser evitadas com acompanhamento preventivo e orientações adequadas. Segundo a Secretaria da Saúde do estado, há somente o número de atendimentos individuais para albinos registrados pelo Sistema de informação em saúde para a Atenção Básica.

Guerreiros da Noite: o albinismo entre os Kaingang

Estudos apontam que o albinismo pode ser encontrado com maior frequência em alguns grupos populacionais isolados, que também sofrem com a falta de políticas públicas e a desinformação sobre a condição. O artigo Clusters de albinismo oculocutâneo em populações isoladas no Brasil: um desafio da genética comunitária, identificou 18 agrupamentos espalhados pelo território brasileiro, sendo que sete deles estão localizados em comunidades indígenas, particularmente entre os Kaingang no Sul do Brasil. A doutora Lavinia Faccini, uma das autoras da pesquisa, relata que a prevalência de albinismo nessas comunidades indígenas é de 1/1.000, o que totaliza 17 vezes mais do que a prevalência mundial, que é de 1/17.000. A explicação para essa incidência, de acordo com o estudo, seriam o isolamento e a endogamia, que configura o acasalamento entre parentes.
O albinismo é prevalente entre os indígenas Kaingangs do Sul do Brasil / Foto: Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (Inagemp)

Rosa Garcia é Kaingang, moradora de uma aldeia no município de Engenho Velho, localizada a 374 quilômetros de Porto Alegre. Com 54 anos de idade, ela diz conhecer cinco albinos na comunidade. O primeiro caso registrado no local foi há mais de 60 anos e despertou o interesse na aldeia. “Vieram muitas perguntas, era um mistério. Aí os mais velhos, os kuiãs indígenas, ficavam estudando sobre essa menina. O meu pai já era kuiã naquele tempo e descobriu que ela é filha da Lua”, relata. Jorge Garcia, pai de Rosa, era cacique, doutor e conselheiro da aldeia na época. Após observar o comportamento dos albinos que nasciam, passou a chamá-los de Guerreiros da Noite, visto que eles tinham maiores dificuldades quando expostos à luz solar.

Faccini explica que essa alteração genética não chegou recentemente até os Kaingang, o que fez com que eles entendessem de maneira cultural a condição da ausência de melanina ao longo dos anos. “Eles integram muito bem essas pessoas, mas elas têm que sobreviver. Então, elas também são agricultoras dentro da sua terra indígena e realizam outras atividades, precisando de toda proteção”, alerta. A falta de conhecimento sobre o albinismo e de recursos para o cuidado, que ainda é parte da realidade de grupos mais afastados, faz com que essas pessoas sofram com problemas de visão e de pele ao longo de toda a vida. “Faleceu uma albina conhecida minha lá da terra natal. Só que ela capinava, ela ia na roça plantar e trabalhar. Quando a pele dela ficava ruim, dava dó de ver. Os lábios dela ficavam rachados, virava sangue”, revela Rosa sobre uma amiga de uma aldeia distinta, que faleceu sem nunca ter passado por uma consulta médica.

De acordo com Faccini, o apoio que as comunidades indígenas recebem atualmente vem da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que encaminha os casos para centros especializados, como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Outra ajuda parte de universidades e ações comunitárias. Um exemplo foi uma missão de Assistência, Ensino e Pesquisa do HCPA e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizada em abril de 2024, que esteve na Terra Indígena do Guarita para conversar com lideranças, moradores e agentes de saúde locais sobre o albinismo e a galactosemia, outra condição genética rara. Na ocasião, as pessoas com albinismo receberam protetor solar e bonés.
 
Kaingangs albinos da Terra Indígena do Guarita recebem protetor solar e bonés / Foto: Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (Inagemp)

Apesar das iniciativas, as políticas públicas fazem falta para essas comunidades. De acordo com a Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul, o estado não fornece recursos de proteção como filtro solar para albinos. Rosa tem uma neta de quatro anos com a condição, chamada Jéssica Beatriz Cristão, e conta que, embora tenha conseguido atendimento através do SUS para ajudá-la, ainda existem muitas dificuldades em relação ao suporte de óculos de grau e protetores solares. Além disso, deixa claro que não são todos os indígenas que têm condições de procurar a saúde pública. “Eu queria pedir para o Governo cuidar mais desses albinos. Essa menina que eu falei nunca foi atendida como a minha netinha está sendo. Eu queria para todos eles”, ressalta.

Emergência Climática e Cuidados com o Sol

Mesmo em dias nublados ou em ambientes internos, é recomendado que albinos utilizem protetor solar / Foto: Bárbara Bertoncini

A falta de atendimento especializado e de políticas públicas efetivas para a população albina é evidenciada por conta da emergência climática que o Brasil e o mundo enfrentam. De acordo com o setor de hospitais universitários do Ministério da Educação, nos últimos 60 anos, algumas áreas do país registraram um aumento de até 3°C nas temperaturas máximas diárias, ultrapassando a média global e exigindo maiores cuidados quanto à exposição aos raios solares. Também houve um crescimento significativo na quantidade de dias anuais com ondas de calor, que passou de sete para 52 nos últimos 30 anos. Os dados estão presentes no relatório Mudança do Clima no Brasil, divulgado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em novembro de 2024. Com isso, populações mais suscetíveis a doenças relacionadas à exposição solar, como os albinos, ficam expostas e correm mais riscos.

Rosa Garcia conta que as ondas de calor são uma grande preocupação dela como avó de uma criança albina. Mesmo utilizando protetor, roupas compridas e chapéu, Jéssica não pode ficar exposta ao sol por muito tempo, pois apresenta irritações constantes na pele. “Esses dias ela queimou bastante a pele e o couro cabeludo, porque ficou brincando com as outras crianças nas árvores. Daí eu falei para a mãe dela não deixar ela brincar em dias muito quentes”, relata. Para Bianca Brandalise, a emergência climática afeta a população em geral, mas traz complicações em maior escala para pessoas albinas. “O ambiente está ficando mais extremo. No caso dos albinos, o cuidado acaba tendo que ser constante com o uso de protetor solar. Para mim é como escovar os dentes”, brinca.

A especialista Lavinia Faccini ressalta que a redução progressiva da camada de ozônio tem aumentado a incidência de raios ultravioletas, colocando a população albina em situação de risco. Segundo ela, o verdadeiro perigo não é o calor, mas a exposição contínua aos raios UV, que incidem mesmo em dias nublados ou chuvosos. Por isso, conforme mencionado por Bianca, a aplicação frequente de filtro solar deve ser uma medida indispensável na rotina dos albinos, assim como o uso de chapéus e óculos com proteção UV. Faccini também alerta sobre o impacto do desflorestamento para comunidades indígenas com essa condição, já que as árvores oferecem uma proteção natural contra os raios UV. “Muitos deles trabalham como agricultores sem nenhuma proteção, então o risco é bem mais alto”, afirma.

Por fim, Faccini acredita que uma das soluções viáveis para combater os problemas enfrentados pela população albina do Rio Grande do Sul seja a criação de um centro de cuidado multiprofissional para albinos. “A pessoa vem e já recebe a revisão do dermatologista, avaliação oftalmológica, consulta com o dentista e, se necessário, apoio de assistência social e geneticista”, pontua. Além disso, seria realizado o fornecimento de protetores solares e dos demais recursos necessários.

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